quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Uma tarde no H.U com Caetano e Chico

Territórios sensíveis-11/11/2015-Cinema no HU. Enfermaria 9A-23




Em 1967, ao adentrar o palco do Teatro Record, Caetano Veloso foi surpreendido por uma estrondosa vaia. Não se tratava de uma represália somente ao cantor, ou sua música. A vaia era tida por muitos como instrumento de manifestação popular diante de uma ditadura militar que se configurava mais demorada do que pareceu inicialmente. Ainda assim, sorriso no rosto e os famosos caracóis ao vento, o cantor baiano prosseguiu na canção, sem deixar de sorrir por um momento sequer. Saiu do palco aclamado pela multidão, enquanto repetia “eu vou, por que não,por que não”, versos de Alegria,Alegria. Parece incrível que, em meio ao calor, às enfermidades, ao cansaço e à rotina de um grande hospital a música se sobreponha como narrativa, mesmo que por alguns momentos. Mas sim, enquanto exibíamos Uma noite em 67, documentário de Renato Terra e Ricardo Calil, a maior parte dos pacientes acordados acompanhava a evolução de Chico Buarque, Edu Lobo e Caetano Veloso, em vídeos de arquivo e entrevistas gravadas em off. Uma das pacientes, empolgada, citava fatos da vida de cada artista enquanto as acompanhantes comentavam cada apresentação. Logo aparecia na tela (a parede da enfermaria, diga-se de passagem) a imagem de um Roberto Carlos em seus 20 anos, o que levantou exclamações de todas as presentes. Mas foram os belos olhos azuis de Chico o componente que alimentou o devaneio feminino naquela enfermaria.Chico, afinal de contas ,é e sempre vai ser Chico. Poderíamos dizer que estávamos em uma sala de exibição ou sala de estar como outra qualquer, em que comentávamos umas com as outras os sucessos na telinha ou na telona. Contudo, estávamos na enfermaria do Hospital Universitário, onde a cada minuto profissionais de saúde entravam para procedimentos, pacientes entravam e saiam e até um aparelho de raio-X irrompeu no local. Em dado momento, a paciente mais grave precisou ser submetida a um procedimento delicado, sendo atendida por uma profissional que, apesar de permanecer atenta ao trabalho, permitiu-se cantar os versos de Caetano. Alheio a tudo isso, o filme continuava sua narrativa e Sérgio Ricardo quebrava seu violão em pleno palco. A cada cena, as pacientes e acompanhantes lembravam de um fato,uma historia,comentando umas com as outras.É impossível assim não lembrar de autores como Muniz Sodré que fala sobre os meios como formas vinculativas e pensar que o cinema ali naquele ambiente permite experiências compartilhadas, potencializadas pelo uso da música.Assim, um breve olhar aos rostos nos primeiros acordes das canções permite registrar o instante do reconhecimento, como se o som ativasse imediatamente uma memória,um afeto. E cada uma das presentes vira-se para a outra, perguntando: você lembra?Também eu me lembro das músicas da década de 1960, que conheci ainda muito pequena. Era esse o recurso da minha mãe para que eu conhecesse a história recente do Brasil. Em minutos passaram pela minha cabeça as tardes na sala de casa, entre discos de Gil, Caetano e Chico e as peças de escola, em que eu sempre buscava temas que envolvessem a ditadura militar. Nem nos maiores devaneios me passou pela cabeça que, em algum momento da vida, eu estaria exibindo as canções da minha infância para pacientes internados, principalmente pelo fato de que a área de saúde jamais foi uma opção de carreira para mim. Assim como “A roda viva” de Chico Buarque, “ o mundo girou” e me colocou ali em plena enfermaria do HU, vivenciando uma experiência sensível, em tudo isso que sensibilidade quer dizer, posto que, ao passo que o filme convida ao devaneio, há realidades que não podem ser ignoradas e acabam sendo incorporadas à narrativa do filme. Enquanto cantávamos Roda Viva,uma menina,que voltava de um exame desmanchava-se de chorar,ao telefone. Sua mãe, uma das mais animadas espectadoras do filme enquanto a filha estava ausente, em dois passos teve que se deparar com a dura realidade da doença da menina e seu desespero. A tudo isso é possível assistir na enfermaria e por vezes as histórias são tristes demais para que possamos suportar. Mas é preciso persistir e deixar que a música faça seu trabalho, invadindo aos poucos o ambiente, propondo novas territorialidades e tornando o cotidiano mais leve, em alguma medida. Penso que esse também é o papel da cultura e da comunicação, enquanto experiências que convocam o sensível e propõem um instante de silêncio em meio ao caos cotidiano. Uma vez que se deixa a música e a imagem entrarem, tempo e espaço se fazem subitamente outros, assim como nós.

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