terça-feira, 8 de março de 2016

Dia das mulheres. No cinema. E em qualquer lugar. Em cartaz: Malala

Territórios sensíveis-Cinema no HU. 08/03/16. Enfermaria 9A 37







Se o feminismo veio na mamadeira de muitas de nós, não deveria ser difícil pensar em um filme para exibir nesse dia tão importante, certo?Errado! Ao receber a tarefa de escolher um filme para exibir hoje entrei em parafuso, pois as opções, sendo inúmeras, indicavam cada uma um caminho diferente. De imediato, As sufragistas foi minha escolha principal. Seria ótimo exibir esse filme hoje em uma enfermaria cheia de mulheres. Infelizmente não foi possível baixá-lo ou comprá-lo a tempo. Estava bem desanimada quando me deparei com o Documentário Malala, indicado ao Oscar de 2016. Levei-o. Ainda na chegada à enfermaria percebo que o local esta ocupado com muitos internos realizando procedimentos. Espero uns 40 minutos até que a aula acabe e possamos iniciar. Como hoje a sala estava muito mais clara do que de costume, optei pelo áudio em português em vez da legenda, para tentar captar melhor a atenção do público. Tal estratégia parece ter sido bem sucedida de início, se levarmos em consideração que quase todas as pacientes prestaram atenção logo de cara no filme. Ocorre que uma exibição em uma enfermaria é uma exibição em uma enfermaria. Em um hospital universitário, ainda mais. Há que se abstrair o calor, a luz, o barulho e as constantes interrupções no filme. Durante toda a sessão, as pacientes prestam atenção por alguns minutos, depois levantam-se, vão ao banheiro, mexem no celular, tiram um cochilo.Hoje,pela primeira vez, compreendi melhor essa dinâmica e, em vez de me sentir desanimada e propensa a desligar o projetor mais cedo, apostei em exibir o filme até o final. E então, como geralmente acontece, a magia da narrativa se fez. Começou devagar, com os já costumeiros “olha, cinema, que legal”, de quem passava no corredor. Depois, com uma das acompanhantes reconhecendo a figura de Malala e sua história. E, um pouco depois da metade do filme, fui chamada por uma outra acompanhante que,silenciosamente, puxou sua cadeira para mais perto da “tela”, assistiu um bocado e me falou,pensativa:”essa menina, nossa, ela se parece com Ester,você conhece a história dela?”. Ante a envergonhada negativa, ela me contou que Ester, a da Bíblia, tinha sido uma mulher muito corajosa,que também enfrentara injustiças e que lutara por seu povo, assim como Malala. Ao seu lado, mais duas acompanhantes concordaram e (enquanto o filme corria) começamos a falar sobre a situação das mulheres paquistanesas, a semelhança com nossas mulheres no Brasil e como Malala havia sido corajosa de enfrentar tamanha violência. E então, juntas, concluímos: ela sobrevivera para contar sua história, para levá-la aos quatro cantos do mundo, para quem quisesse ouvi-la, mesmo uma longínqua enfermaria pública nos trópicos. Enquanto isso, a paciente, mais nova, que não aparentava ter mais de 20 anos, acompanhava atenta todos os detalhes do filme, mesmo com sua cama rodeada de visitas. Filme terminado, perguntei se gostaram. “Sim, muito”, foi a resposta geral. Comentei que a intenção fora mostrar um filme em homenagem ao dia de hoje. Todas aprovaram a escolha e, no final, ainda ouço o seguinte comentário de uma acompanhante, relacionando o dia de hoje ao filme e à coragem de Malala: "porque hoje mulheres não são mais dependentes, só quando querem..Mulheres fazem tudo e são ainda mais fortes...". Saí de alma lavada e passada(como diz uma amiga)... O dia de hoje, mais do que aquecer o coração para uma empatia necessária entre mulheres (não só hoje como sempre) me fez pensar no lugar do documentário na enfermaria. Mais que um entretenimento, o cinema hoje foi absolutamente comunicacional, como um programa jornalístico que se assiste ou uma transmissão de rádio, levando até as senhoras a história de Malala e fazendo-as refletirem e debaterem. Mais do que isso, na identificação com figuras femininas houve a conexão necessária para que se colocassem como parte da narrativa. E essa ligação não estava relacionada com o ato cotidiano de assistir o filme do começo ao fim, mas de ser definitivamente tocado por aquela história. Dessa forma, o cinema hoje foi uma janela para que o mundo pudesse entrar na enfermaria e ser observado, debatido e ressignificado pelas pacientes. Janela que foi aberta não só por mim, ou pela minha presença na enfermaria, nem tão pouco pelo filme, mas construída no espaço entre nós, o filme e nossa experiência tão coletiva quanto afetiva.

quarta-feira, 2 de março de 2016

Cinema na Rua. Experiências sensíveis e formas de habitar a cidade





Pensar na experiência do cinema é pensar no contato individual com a narrativa fílmica a partir do ambiente escuro, frio e silencioso da sala de exibição, certo? Para o coletivo Projetação essa descrição não poderia estar mais errada. A começar pelo local onde os filmes são exibidos. Há claramente a escolha pela prática do cinema como ocupação de um território, proposta de narrativa que, longe de estar desassociada com o espaço público,intervém, toma posse,ressiginifca lugares da cidade.Assim foi no último dia 24 de fevereiro, na exibição do documentário feito na ocupação de escolas em São Paulo. O filme foi projetado no viaduto de Laranjeiras, entre as movimentadas ruas Pinheiro machado e Laranjeiras, para onde aflui diariamente o tráfego pesado de carros e gente. Isso significa primeiro que o áudio do filme vai ser atravessado pelas mais diversas sonoridades; desde o movimento de pessoas voltando para casa, o tráfego na rua de carros, bicicletas, cachorros e carrinhos de pipoca, principalmente estes últimos. Além disso, o evento reúne apresentação de bandas de música, criação/mostra de textos, pintura e muitas outras atividades acontecendo em conjunto com o filme,até mesmo o próprio filme, pois, além do filme, há projeção de imagens e textos criados na hora na parede do viaduto.Forma-se aí novas narrativas urbanas, circulando do concreto do viaduto ao chão da praça, passando pelo asfalto e pelos carros e ônibus. Em meio a toda essa mistura, chego ao Viaduto e me deparo com poucas pessoas, algumas sentadas no chão, outras confortavelmente instaladas em um murinho, enquanto os organizadores pensam onde vão exibir o filme. Em cima de uma bicicleta está o equipamento, mas os organizadores não têm pressa de montar a parafernália técnica necessária. Ao contrário. Se a ideia é ocupar o espaço, eles se revezam, passeando um após o outro com o equipamento pela pracinha que fica sob o viaduto, até que alguém lembra que é preciso montar a tela, ops, a lona. Enquanto isso, o público que chega ouve um jazz despretensioso tocado pela banda. Tem gente que passa voltando do trabalho, da escola, da padaria e interrompe o caminho para dar uma espiada. Tem gente que chega,senta no chão da praça e tem gente que passa por ali, olha e fica.Caso de um menino de seus 10 anos, provavelmente em situação de rua,que, para ver o filme,que fala de crianças como ele, que ocupam escolas da mesma forma que ele ocupa a praça. Dono da casa, muito à vontade, o menino circula, olha o filme e, por fim, senta do lado dos organizadores, que prometem dividir o dinheiro do “chapéu” com ele. Filme visto, o show continua, com música e pintura, debates e intervenções. Os textos continuam pendurados, em exposição no viaduto.As ilustrações estão impressas no chão da praça. E o cinema, que estava na tela, expandiu-se, multiplicou suas narrativas, ocupou o espaço urbano,fez dele lugar onde os corpos se revezam, constroem recortes, diferentes enquadramentos, propõem montagens e recortes onde a cidade e seus habitantes tornam-se possibilidades narrativas infinitas.