quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Lições de Humanidade: 04/11/15-Enfermaria geriátrica do HU- Enfermaria-9A. 27



No filme o grande ditador, Charles Chaplin, em seu último discurso, teria dito: “Mais do que máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.” (O grande ditador, Charles Chaplin, 1940). É impossível adentrar a enfermaria do Hospital Universitário e não se lembrar dessas palavras. Principalmente quando a sua tarefa envolve a prática do cinema.Por todos os corredores do hospital, profissionais e pacientes atravessam o mesmo espaço, trocando palavras, realizando suas tarefas diárias e sendo atendidos, de acordo com a necessidade de cada um.Muitas vezes, o cotidiano parece “enevoar” cada contato, distanciando os sujeitos envolvidos nessas atividades. E então se assiste ao desfile de “desumanidades”, quando pacientes são vistos como tarefas e profissionais de saúde como detentores de técnicas, sem que um ou outro possa se dar conta do que esta acontecendo de errado. No momento em que entrei na enfermaria, um profissional auxiliava outro (provavelmente estudante) na execução de um procedimento. Enquanto a estudante realizava sua tarefa no corpo do paciente, o profissional absorvia-se em seu próprio celular. Poucas palavras são trocadas, além do necessário para que a técnica por si realize seu trabalho. È nesse ambiente onde monto o equipamento de projeção, imaginando quem iria acompanhar o filme, uma vez que dois dos pacientes dormiam e outra estava em meio a um procedimento. Restavam S. e J., que concordaram em assistir à projeção. Joselma, inclusive, desligara a TV. O filme escolhido? “Vida de Cachorro”, de Charles Chaplin. Na história, Carlitos percorre sua trajetória na companhia de um cão, encontrando uma jovem, com quem se casará ao final da narrativa. Antes, porém, enfrentará dissabores, como a fome,o cansaço e a falta de dinheiro.O pior de tudo:a falta de humanidade das pessoas com as quais o personagem convive. Como sempre acontece, quando a música toma a enfermaria, a linha tênue entre a narrativa na tela e a realidade parece se esgarçar ainda mais. Arrisco imaginar que a trilha sonora compõe com perfeição as ações da enfermaria, permeadas de drama e alguma comédia, por vezes. Assim, S. e J. seguem as aventuras de Carlitos, enquanto V. ,uma senhora que dormia quando chegamos, abriu os olhos e me parece prestar atenção em tudo que fazemos, embora a enfermeira comentasse de seu estado de “ausência”. Também ocorre ver profissionais de saúde adentrarem a enfermaria e, surpresos ante o filme que está sendo exibido, esboçarem reações curiosas. Muitos sorriem, chamam a atenção uns dos outros e por alguns minutos acompanham a projeção. Outros, como o profissional que realizava o procedimento na enfermaria, parecem alheios ao movimento. Enquanto isso no filme, Carlitos tenta conseguir um bocado de comida, para ele e seu cachorro. Olhos atentos, S. e J. concentram-se na tela e até a enfermeira que me acompanha, de bom grado continua ao meu lado, seguindo a narrativa com interesse. O filme acaba e V., a paciente “ausente”, recebe duas visitas que, espantadas com o comportamento dela, perguntam se ela nos conhece, pois fixa seus olhos em nós. Comento que ela não me parece assim tão “desligada” e me arrisco a dizer que V. acompanhara bastante do filme exibido. Por sua vez, S. e J. dizem gostar muito do filme, principalmente por tratar-se de uma história envolvendo um cachorro. Despedimo-nos e volto para casa pensando ainda nas palavras de Chaplin: ”mais do que técnica, precisamos de humanidade”. Assim, mais do que somente procedimentos técnicos, o que os paciente necessitam parecem ser mãos estendidas, ouvidos que possam ouvir e olhos que possam vê-los, entrarem em contato, compartilharem o momento. Dessa forma, começo a compreender a ideia de território sensível como mais do que um espaço material, localizado entre paredes, mais um espaço afetivo, determinado pela experiência compartilhada e pelo afeto que se troca, não só durante o filme, mas apesar do filme que é exibido. Territorializar seria então uma forma de coabitar o outro, tocar o sensível, trazer suas memórias e afetos à borda, compartilhar um tempo comum. E se o cinema pode constituir este espaço, ele o fará não somente por tratar-se de uma experiência sonora e visual, mas efetivamente sensível, posto que permita o contato com o outro, enxergá-lo na mesma medida em que enxergamos a nós mesmos, dividindo a mesma vivência, seja com as agruras de Carlitos, seja com as relações cotidianas na enfermaria. Logo, realidade e ficção, ao entrarem em contato, diluem-se em alguma medida, possibilitando não somente a fruição estética, ou a “distração”, tão necessária a pacientes e profissionais de saúde, mas o exercício de reflexão no qual o olhar sensível traça uma comunicação entre mim e o outro. A comunicação se faz quando os pacientes comentam o filme, agradecem, falam de suas partes preferidas mas, principalmente, quando vejo que seus olhos foram captados pela história e conseguiram levá-los além de sua condição hospitalizada.Ao término do filme, quando sorriem, sem que seja necessário uma palavra além, encontramo-nos,eu e eles, irremediavelmente modificados.

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