sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Territórios sensíveis- 18/09/15. Enfermaria B -Hoje é dia de cinema, bebê!

Contrastando com o calor, o caos e o trânsito de uma sexta-feira tipicamente carioca, o lugar escolhido hoje para abrigar a sessão semanal de Cinema e Hospital parecia um oásis. A começar, o silêncio que cercava o espaço.É que seus ocupantes,quase todos,ainda nem tocam o chão e mal sabem falar. A maioria, aliás, não completou o primeiro ano de vida. Entretanto, encontram-se hospitalizados, junto com seus pais. Eles, os responsáveis, são o foco da atividade de hoje, uma vez que também fazem parte das experiências geralmente direcionadas aos filhos. O público se compunha de quatro pequenos pacientes: Ana Maya, Davi, Maysa e o belo Miguel, em seus prováveis 10 meses de vida. Embora sejam necessários muitos cuidados com os pacientes, a enfermaria B é a mais silenciosa de todas nas quais estivemos. Talvez porque seus ocupantes ainda tirem boas sonecas e manifestem seus desejos costumeiramente através de um choro discreto, que é logo atendido por alguém. Nossa chegada é muito bem recebida e o pai de Miguel comenta feliz que é a primeira vez que seu filho vai ao cinema. O filme escolhido é Kiricoum, uma lenda africana sobre um menino que nasce muito pequeno, mas, apesar do tamanho, vive diversas aventuras e salva sua família e aldeia de uma feiticeira supostamente malvada (#alertadespoiler). Logo na nossa chegada, a mãe de Ana Maya diz que já conhece o filme, mas ainda assim quer assisti-lo. Antes, porém, resta-nos a dificuldade de dar à enfermaria um ar mais cinematográfico, por assim dizer, transformando a cortina da janela em tela de cinema. Tela pronta, luzes apagadas, o filme já pode começar.Logo no início somos brevemente interrompidos por duas moças, que trazem doações de fraldas e objetos de higiene para os bebês e até param por algum momento para ver o filme.Por esse viés, os laços de solidariedade e afeto permanecem reforçando a ideia de territórios sensíveis. E é assim que Miguel, apesar da pouca idade, acompanha o filme (um longa metragem) com algum interesse, mesmo em alguns momentos não se fixando muito na tela, mas no pacote de fraldas, no shampoo, no móbile sobre seu leito, etc.. O mesmo não se pode dizer dos pais,que seguem com atenção as aventuras de Kiricoum e até a enfermeira, que se senta confortavelmente em uma cadeira pra assistir.Parece-nos que a narrativa fílmica,aos poucos e ainda com interrupções, convoca os olhares e convida a uma pausa cotidiana para vivenciar aquela experiência.Nessa enfermaria as interrupções foram menores, apenas com uma ou outra troca de fraldas. É interessante relacionar o tema do filme, um bebê bastante corajoso, com o cotidiano dos pacientes da enfermaria B, também pequenos, tendo que, de alguma maneira, serem fortes para enfrentar o cotidiano no hospital. Também seus pais parecem mais conectados com a experiência fílmica, interagindo com os filhos e o filme, sem deixar de acompanhar cada detalhe da história. Mas, do lado de cada da tela também há narrativas interessantes, quando se nota que é a primeira vez que vemos um paciente acompanhado pelo pai. Via de regra, são mães e avós que ficam com as crianças. No entanto, o pai de Miguel age com naturalidade, alimentando-o e acalentando-o e sendo por sua vez acalentado pelo filme. Em dado momento, pai e filho aconchegam-se em uma poltrona, concentrando-se (dentro das possibilidades etárias de cada um) na narrativa que se desenrola na tela. Da mesma forma, quase todos os responsáveis têm seus olhos fixos na tela, aguardando nosso pequeno herói, Kiricoum, realizar suas aventuras. Em seu filme, ele salva a aldeia e cresce ante os assombrados olhos de seus conterrâneos. Também nós, tocados pela imensa experiência afetiva vivenciada hoje, nos tornamos maiores, mais fortes e mais humanos. É impossível não se sensibilizar ao ver um pequeno bebê como Davi ou Ana Maya ou mesmo os belíssimos Maysa e Miguel, presos a equipamentos de hospital. A simples visão de seus rostos comoveria o mais frio dos sujeitos. A eles resta o colo dos pais e o carinho dos profissionais de saúde. Mas e o pais?Quem cuida deles?Quem pode dizer-lhes que não estão sozinhos e fornecer algum instrumento para que, por alguns momentos esqueçam onde estão e quanto tempo falta para voltarem pra casa?Seria o cinema uma saída possível? Talvez não seja a única. Contudo,daqui de onde vemos,parece ser a mais sensível.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Sobre bolhas de sabão ou : quando correr não é uma opção (Territórios Sensíveis: 11/09/15-Enfermaria C)

A visita de sexta-feira começou em clima mais frio, não somente devido à meteorologia, mas porque, logo de cara, percebia-se certo desânimo no ar. Assim que chegamos, encontramos nosso pequeno cineasta, Pedro, amuado no corredor, pois ia ser submetido a um procedimento cirúrgico. Também Julia, a menina que conhecemos na semana passada, chorava baixinho encolhida no seu leito, no fundinho da enfermaria C.Parecia que nada poderia melhorar o dia deles,nem mesmo uma sessão de cinema.Diante de tal quadro, a possibilidade de passar um filme parecia quase criminosa ou no mínimo ineficaz,mas ainda assim foi necessário resistir.Ao todo, a enfermaria escolhida tinha seis crianças, duas meninas em seus oito anos, uma mais velha, Sara, diagnosticada segundo a própria mãe com hipersensibilidade e dois meninos,que dormiram durante toda a sessão. Foi a mãe de Sara que também contou que como a filha não podia frequentar escolas,usava DVDS de filmes para educá-la. Uma das meninas, Letícia, nossa conhecida, permaneceu em seu leito, como sempre que íamos até sua enfermaria. Ainda assim, quando iniciamos os preparativos para a sessão, postou-se de modo a acompanhar de sua cama o filme que seria exibido.Também Julia permaneceu em seu leito, sob pesadas cobertas,mas acompanhou com algum interesse o filme,chamado A menina e o cachorro flautista.Um acontecimento curioso:a história,que se passava em uma praia,incluía uma cena onde algumas pessoas realizavam um ritual para Iemanjá.Imediatamente a mãe,alarmada, postou-se na frente da filha,para que ela não visse a cena.Ainda assim, o fato da história reunir elementos de filmagem e animação parece captar a atenção das crianças, como uma janela que se abre para o mundo. Até mesmo Sara pareceu se acalmar um pouco durante a sessão. No meio do filme, uma interrupção: entram na enfermaria alguns profissionais de saúde para realizar um procedimento em Julia. Como é de costume,mais uma vez a ciência e suas urgências atravessam a narrativa fílmica no hospital.Ainda assim, quase todos os profissionais pedem desculpas pela interrupção,pois parecem perceber a importância da atividade para crianças tão pequenas,presas por dias,semanas e meses em um mesmo lugar. Há momentos, entretanto em que o lúdico é atravessado pelo cotidiano. Quanto a nós, é necessário fazer-se invisível, não interferir e mais do que isso, procurar não olhar, posto que a visão de corpos infantis machucados sempre é muito dura.Mas é preciso resistir ao impulso de pegar aquela menina no colo,de consolá-la,ou de sair correndo. Mesmo com os olhos baixos ouso imaginar a dor e o incômodo de ter seu corpo machucado sendo manipulado por estranhos. Em uma das poucas vezes em que levanto os olhos, a visão de um amontoado de bandagens e gaze ensanguentadas quase me fazem sair correndo.Melhor não olhar mais,decido. E o cinema, numa situação como essa?Fica ali, no cantinho reservado à imaginação, onde talvez Julia deva estar. É onde eu gostaria de estar também nesse momento, tão forte é a vontade de fazer parar a dor que ela com certeza sente. Como terá se machucado?E essas pessoas, esses profissionais tão jovens, na obrigação de intervir nesse corpo tão pequeno?Agora, em torno do leito de Julia se reúnem seis pessoas. Têm a certeza e a função de salvar o corpo da menina. E sua alma, quem salva?No ambiente do hospital a autonomia dos corpos parece não existir. Mas e a da alma? Seria possível voar ante tantas adversidades?Nesse viés, criar um caminho, uma proposta de narrativa e experiência sensível é timidamente abrir portas ou propor maneiras de a alma poder dar suporte ao corpo. Enquanto o procedimento prossegue, Sara grita interruptamente. No leito ao lado, uma aluna do projeto Alunos contadores de historias lê um livro para Letícia.No meio do barulho em que médicos debatem a ciência, o filme continua e a narrativa lúdica toma novamente o lugar dos processos científicos. No intervalo do filme são realizadas atividades com jogos de montar. Em alguns momentos, é preciso apropriar-se de atividades propostas pelos próprios pacientes, como contação de história ou brincadeiras com massinha de modelar. A mesma mão que chama, que se abre para acenar, também muitas vezes se fecha quando o cotidiano impossibilita a continuidade da brincadeira. E durante todo esse tempo, Pedro permanece no centro cirúrgico. Logo após o filme, Julia foi estimulada a criar um filme com cinco cenas, a partir de um bloco de montar. É interessante perceber que, por vezes, as crianças estão tão fragilizadas que aceitarem participar da atividade é quase um milagre. Mas, felizmente, Julia aceita a proposta da educadora do CINEAD e cria uma história de um cachorro chamado “o cachorro criativo”.É quando,em outro canto, a enfermaria se enche com bolhas de sabão, feitas pela irmã de Sara que viera visitá-la. Ante a visão das bolhas, Sara imediatamente passa a caçá-las, feliz. As bolhas podem ser uma excelente metáfora para os nexos possíveis entre nós e os pacientes do IPPMG: leves, frágeis e por vezes interrompidos abruptamente. Mas ,enquanto existem,são irremediavelmente belos.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Hoje é dia de cinema- 04/09/15

Hoje é dia de cinema?Sim, senhor! Quando se faz a escolha da pesquisa de campo por meio da cartografia, a cada visita saímos e entramos de formas diferentes dos lugares pesquisados e há sempre formas distintas de adentrar o espaço e travar contato com aqueles que ali estão. Há sempre o impulso de não romper o silêncio e o descanso de quem dorme ou de não interferir na organização já existente, mas se assim fosse,como oferecer-lhes a experiência do cinema?É necessário então encontrar a forma certa para poder avançar, conquistando a cada passo mais um pouco de território simbólico. Hoje não foi diferente. Para começar, a quantidade de pacientes tornava qualquer tarefa de longa duração enfadonha para as crianças que, para tornar tudo mais complicado, eram de diversas faixas etárias. A opção escolhida pela equipe de educadores foi pela escolha e exibição de filmes. Filme escolhido, era necessário fechar as cortinas da enfermaria, organizar os assentos e chamar a plateia para assistir. Hoje, curiosamente, não foi necessário levar o filme ate os leitos da enfermaria.Ao contrário. As crianças,provavelmente devido à melhora de seu estado, levantaram quase todas e juntaram-se para assistir ao filme.Assim,acomodada a plateia,começou a exibição do filme e os olhos das crianças concentraram-se atentamente na história que viam desenrolar-se na tela. Em dado momento, ante o surgimento de um personagem egípcio, ouviam-se as observações da plateia, comemorando ou criticando as ações do vilão. Por alguns minutos o espaço do hospital transformou-se em sala de cinema, seja pela organização da plateia em cadeiras estrategicamente localizadas, seja pelo escurinho da sala ou o tamanho da tela. Logo que o filme acabou, iniciou-se uma atividade de jogos de sombras, o que gerou algum conflito entre as crianças, quando duas resolveram escolher a mesma boneca de palitos. Brigas. Reclamações. Choro. Então a mãe de uma das conflitantes,uma menina de seus 3 anos, resolveu oferecer-lhe uma massinha de modelar. No gancho da ideia, propus que contássemos uma história de animação com a massinha. Aos poucos, enquanto eu tentava dar uma forma remotamente parecida com um coelho à massa, as lágrimas começaram a diminuir e logo se espremeu entre as bochechas da pequena paciente um sorriso. Logo, interagíamos com os bonecos de palitos e fomos até a tela, levar o “coelho” e os bonecos para o centro da narrativa. Brincando de sombras, mostrei que podíamos criar coelhos com nossas mãos e com os bonecos de palitos. A menina, agora rindo bastante, pareceu adorou a diversidade das atividades, embora, verdade seja dita, não prestou tanta atenção ao filme exibido depois. Necessário dizer que passei o restante do tempo refazendo infinitas vezes o coelho que a cada momento tinha uma aparência diferente. E então se torna mais claro o verdadeiro recorte comunicacional da prática no hospital: entrar em contato, chegar ao outro é também e principalmente saber ouvir suas demandas, acordar um nexo em comum, mesmo que não seja necessariamente a partir da experiência fílmica, mas pelo caminho da sociabilidade. O mais importante parecem ser as narrativas criadas, laços que vão aos poucos gerando amarras entre os participantes e nós. É preciso estar sempre alerta para perceber em cada gesto, em cada palavra uma porta a ser aberta, uma possibilidade vinculativa. Nesse viés,a razão sensível torna-se o elemento fundamental para observação.A menina, dona de um coelho que se refazia muitas vezes, sorria feliz. No final cada criança voltou para sua cama, os objetos foram guardados e a menina do coelho, saltitante, voltou para sua casa, pois ganhara alta.

Territórios sensíveis- 21/08/2015 - Sobre narrativas, silêncios e, claro, dinossauros



Você sabe a diferença entre o Tiranossauro Rex e o Velociraptor?Pedro sabe. Para o menino, em seus oito anos, o que distingue os dois espécimes de dinossauros é que, enquanto o velociraptor efetua sons para atrair seus semelhantes, o T-Rex não se comunica com ninguém, pois seu instinto malvado o leva a não se relacionar, a não ser para a procriação. Foi assim, com a sapiência de um paleontólogo que Pedro me explicou porque não podia dublar o temido dinossauro, em mais um exercício de linguagem fílmica. E partiu do menino a ideia de fazer uma dublagem, uma vez que questionou qual seria o nome técnico da ação de colocar vozes diferentes em personagens de filmes. Informado que se tratava de dublagem, logo quis associar à sua imagem o som de seus animais mais amados: os dinossauros. Câmera a postos, dinossauro nas mãos, ele efetuou sua mis-èn-cene e logo pediu para ver o resultado. - Gostou Pedro? -Sim! Essa foi a sorridente resposta. É fato que foi necessário um pouco de paciência para chegar até ele, pois Pedro revela sua autonomia em pequenos gestos, como o de responder ou não uma pergunta ou permitir que nos aproximemos dele. Da mesma forma, não aceita realizar qualquer atividade, somente aquelas pelas quais se sente verdadeiramente atraído, no seu tempo próprio de interesse. Já se tornou comum ouvi-lo dizer, para cada um dos educadores que aparecem pela enfermaria:- “Não, não quero agora” e, logo depois, curioso pelo que se vai passar, abandonar sua atividade anterior e prosseguir na nova proposta como entusiasmo e muitos (muitos!) questionamentos. Assim foi nessa sexta-feira. Pra começar, ele não queria ver o filme que havia feito, o mesmo filme em que havia atuado, dirigido e escolhido cada uns dos sons da narrativa. Primeiro vinha o desenho que estava assistindo, o que a equipe considerou muito justo.Fim do desenho, ele chama uma das educadoras para ver o seu filme. Interfere em cada etapa, opinando com propriedade sobre o resultado esperado, critica elementos, pede outros e, no final, gosta do que vê. “-Parece até filme de verdade”, exclama, felicíssimo!Uma vez aberta a porta, não há limite para a quantidade de filmes que Pedro quer ver. Ele vê todos, concentrado e em silêncio, sem despregar os olhos da tela, mesmo que, vez por outra, alguns elementos estranhos se unam à narrativa do filme, como as silhuetas dos profissionais de saúde que vem checar seus aparelhos. Mas nada se compara a sua expressão de felicidade quando pede que se coloque seu filme predileto, Jurassic Park. Ele comenta cada segundo, da abertura do DVD às primeiras cenas, chamando insistentemente a mãe, semi-adormecida do seu lado, para ver o filme com ele. Felicidade que não se altera, mesmo que ele tenha que ser interrompido para lanchar, ou para que confiram as informações nos aparelhos que o mantém vivo. Da mesma forma, mesmo que veja filmes repetidos, escolhidos no cardápio das atividades de cinema, seu rosto se mantém impassível,imerso na história, seus olhos ligeiramente arregalados quando vê algum elemento que lhe chama atenção. Hoje Pedro tem um companheiro, Gabriel, que em seus quatro anos resiste o quanto pode a manter-se quieto em sua cama. Sob os apelos da mãe,escolheu um filme para ver, “Ernesto no país do futebol” e então sossegou. Ao longo do filme os dois rostinhos não desviaram um só minuto da tela, acompanhando as evoluções de meninos brasileiros e argentinos, que disputavam um jogo de futebol. Tão concentrado estava Gabriel que nem ao menos notou quando a mãe saiu por um momento, tanta a conexão criada com o filme, como se o ambiente hospitalar, transformado em sala de cinema peculiar, fosse aos poucos convocando cada sentido dos meninos, trazendo seus olhos para frente da tela e vinculando-os às narrativas. Aqui os territórios de sensibilidade vão pouco a pouco se constituindo diante de nossos olhos, quando as histórias vistas e vivenciadas trazem um recorte de mundo, um personagem diferente, que se mistura ao cotidiano dos meninos. O cinema nesse ambiente é quase como uma alfabetização de sentidos, um espaço que se cria entre pessoas, culturas e narrativas, que as refazem silenciosamente, a cada filme visto. Também eu me refaço a cada dia, a cada experiência, traçando novos mapas de observação. Assim, novos recortes sensíveis se reorganizam, convocando meu olhar e sensibilidade para além do filme, mas para o espaço em que este é exibido e para os sujeitos que ali estão. Há múltiplos elementos que se relacionam e interações ainda não desvendadas, como os profissionais que interagem com os pacientes, não na ação técnica da necessidade, mas no percurso afetivo, de um brinquedo que se traz, em uma conversa retomada. Por trás dos afazeres que se encarregam de garantir a permanência da vida, há portas que se abrem,quando profissionais e pacientes se encontram, conversam e reforçam laços afetivos e portas que também se fecham, na constatação de que não é possível a um só tempo abarcar toda a complexidade do cenário. Há sempre o silêncio e o inexplorado, aquilo que não se ousa compreender, como duas crianças, que dormiam enquanto ali estávamos, sem que ninguém estivesse com elas. Uma delas era uma menina de aparentes seis anos, cujo pequeno corpo tremia, enrolada em seu cobertor rosa. Frio?Medo?Enfermidade? Tudo isso junto, talvez. O fato é que estava só em uma enfermaria, sem responsável que a acompanhasse, como informou a médica, pesarosamente. E então enxergo subitamente a enormidade daquele espaço, onde diferentes histórias se cruzam. Há silêncios e dores que não podem ser minimizados pela simples proposta de atividades e ausências que o filme não pode exterminar. É preciso ir além, pensando em formas de fazer a experiência sensível chegar até essa criança, não para que a vivência fílmica se torne transformadora, critica ou ética, mas para que seu cotidiano se torne mais humano, preenchido de alguma forma de afeto.Essa talvez seja a tarefa mais básica, mas também a mais importante a ser realizada.

O pequeno cineasta-09/08/15

Pedro é um pequeno cineasta. Em seus oito anos, já sabe dividir uma história em pedaços, pensar em cada etapa do roteiro e acrescentar elementos para dar mais emoção à narrativa.Além de cineasta, Pedro tem mais duas paixões: filmes de terror..E dinossauros!
Costuma dizer que ninguém sabe mais de dinossauros do que ele. Realmente, o menino não somente enumera uma dezena de nomes diferentes, quanto cria os que não consegue nomear. Não satisfeito, desenha heróis que são metade dinossauro, metade gente.
Hoje, Pedro quis fazer um filme. Ele,parou, pensou, coçou a cabeça até descobrir,no fundinho da memória, um sonho que envolvia tubarões, colares, a morte da tia e,claro,dinossauros.Com um papel na mão,ele explicou claramente o que queria:dois dinossauros, que travaram uma luta de vida e morte.Levaram-no até a câmera.Ele pediu uma cadeira ,das de diretor, com nome nas costas.Deram-lhe a cadeira. Então ele pediu a claquete. Espanto geral.Mas como esse menino tão pequeno sabe o que é uma claquete?
- Sei sim, disse Pedro. Vi num filme. E serve para cortar os filmes em partes. Os adultos perto dele emudeceram de espanto. Mas havia um filme a ser feito. Pedro sentou-se, pediu que lhe ajustassem o tripé, colocou a câmera no ângulo que lhe pareceu correto e recomendou ao ator a forma como ele devia entrar. Sim, Pedro tinha um elenco em seu filme, formado de um adulto que seria regiamente remunerado pelo cachê que o concentrado diretor foi buscar à gaveta mais próxima: uma bala de café.
Ajustados os aparelhos, ensaiado o ator (o diretor deixou claro que não queria usar bonecos como personagens. Queria o uso de sombras projetadas pela luz em um biombo de tecido). E assim foi. Quando tudo estava pronto no set ele ergueu as mãos, bateu palmas e disse: ação! Em poucos minutos, fora gravada a primeira cena. Então Pedro se levantou, postou-se atrás do biombo para representar o segundo personagem e novamente comandou a claquete:Ação!
Cena filmada, o diretor quis ver o resultado e gostou do que viu. Então, categoricamente, perguntou:onde meu filme vai passar?Quando disseram que poderia ser enviado para um festival que exibia filmes em praças, ele interrompeu imediatamente:- Não, não quero praças, quero uma sala, de cinema. Grande,escura,cinema mesmo sabe?
Ante o silêncio de todos (aqueles silêncio típico dos adultos quando ouvem grandes verdades das crianças), Pedro pagou o cachê do ator e voltou pra sua cama, feliz com sua obra, não sem antes ouvir a promessa de que teria seu filme editado e entregue na semana que vem.
Ele estará na mesma cama na semana que vem, que por acaso é dia de seu aniversário. E estará na próxima e na próxima também. Pedro é mais um dos pacientes internados na enfermaria do Hospital Universitário. Sua locomoção depende da boa vontade de alguém que caminhe a seu lado, carregando os aparelhos que o mantém vivo. Foi assim que dirigiu, ensaiou e atuou .
Pedro acabou de fazer o segundo filme. O primeiro, intitulado por ele “Pedro no CTI”, foi muito mal recebido pelo público, seus parentes e médicos, que não entendiam porque o menino queria contar em um filme seu cotidiano no hospital, em vez de valer-se da ficção. Ele respondeu, imediatamente:me deixem contar minha história.

Territórios sensíveis....Publicado em 17/07/15

Há experiências que determinam caminhos, tão intensamente e de modo tão devastador que é impossível continuar sendo os mesmos após termos passado por elas... Nesse viés encontram-se definitivamente as práticas com as emoções e a arte...Na minha vida, através de muitos percursos, minha escolha sempre recaiu no cinema, como narrativa do mundo e de mim mesma.Até então eu acreditava compreender um pouco a natureza humana e que a comunicação responderia a todas as minhas perguntas, quaisquer que fossem elas.O que eu não sabia é que minha visão do ato de comunicar encontrava-se embaçada por formatos prévios, teorias diversas e alguma experiência prática, que me levavam a crer no poder transformador da comunicação, mas definitivamente não me prepararam para sua importância em situações extremas.Nada me preparara para ver e sentir de modo intenso a necessidade do afeto em um ambiente em que a dor e a morte podem estar escondidos em cada esquina.Nenhuma teoria poderia servir para explicar o que significa um sorriso de compreensão mútua em um lugar onde a própria presença do outro, ante um corpo fragilizado, pode parecer invasiva...Em uma realidade cercada pela busca incessante pela conservação da vida e onde pessoas e tecnologias se revezam numa guerra sem fim para ganhar mais um dia para as pessoas que ali estão, qual a importância da percepção, do sensível,da estética em face de tantas provações?Antes de cruzar o limiar da realidade palpável das doenças graves, lentas e dolorosas, eu acreditara que o lugar da arte frente à medicina era mínimo. Hoje, ainda que continue respeitando e valorizando a fundamental e muitas vezes inglória luta dos profissionais de saúde, consigo reconhecer que existe um lugar pra o “entre”, o relacional nesse campo de batalha onde se encontram todas as demais pessoas que também dedicam a vida a minorar o sofrimento alheio. E é nesse lugar que se encontra,entre outras coisas, a arte, não como criação e fruição estética, mas como um caminho, entre tantos possíveis, até o outro... Mais do que isso, como uma ação, pautada no afeto e no sensível, que se faz comum, posto que, através da arte eu consigo me reconhecer naquele que está em um leito de hospital. E é nesse lugar onde a comunicação se torna o elo possível de identificação que aproxima os sujeitos, para além da enfermidade. É na projeção de um filme ante rostos infantis, na atividade lúdica, no sorriso da educadora, que reside não somente o estar junto, mas o “ser junto”. Existência compartilhada que se estende para além dos pequenos pacientes envolvidos entre fios, tubos e químicas, indo até enfermeiros, médicos e demais profissionais e para os pais das crianças, devastados por uma enfermidade tão agressiva quanto seu tratamento... Em instantes, alguns pares de olhos se voltam para a narrativa da história projetada em uma cortina, tornando-se parte do filme... Por alguns momentos, na exibição do filme, cria-se um território distinto da dor, dos medicamentos, que parece romper os muros do hospital e levar pais e filhos a outro possível... Mais do que isso.No ato de propor uma experiência, há o dialogo , o contato com o outro, a mão que se estende, não para fazer de conta que a doença não existe mas, ao contrário, para propor que apesar da doença, todos nós continuamos existindo...Mais do que compreender o outro, trata-se de acolhe-lo.No curto espaço da enfermaria cria-se um lócus da afetividade, um território feito de sensível e de comum,onde as experimentações se cruzam, e os imaginários se comunicam no espaço dos leitos.....O cinema, nesse caso torna-se então o espaço entre, a ressignificação do lugar entre todos que dividem aquela experiência .Na medida em que se partilha o sensível, a comunicação é a trama que enreda a cada um, propondo nexos. Sua importância se dá na medida em que eu me reconheço não somente na dor do outro, mas no seu sonho, na sua emoção...Comunicar seria então dar um passo para minorar o sofrimento de quem enfrenta batalhas diárias, seja no combate a enfermidades como o câncer, seja sofrendo na própria pele seus efeitos devastadores...Além de “estar com”, no ato de ir até o outro e propor uma experiência sensível, há um componente fundamental de afeto que pôe em pé de igualdade educadores, pesquisadores e pacientes.Já não há mais observadores e observados, mas sujeitos inseridos em um mesmo território sensível e irremediavelmente humano.