sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Cinema no HU-25/11/2015-O que é que a Atlântida tem?








O filme escolhido hoje para o projeto Cinema no Hospital, nas enfermarias do Hospital Universitário, obedecia a um padrão pensado no início das atividades: mesclar memória, história do cinema e música. A ideia era unir sensibilização, entretenimento e reflexão em uma mesma atividade. Para isso, a sessão teria em cartaz Carnaval Atlântida, filme de 1952 feito pela Atlântida, produtora brasileira que funcionou entre os anos 1950 e 1960. A enfermaria escolhida foi a 9A33, com cinco pacientes mulheres e um senhor de 90 anos, que dormia profundamente. E fomos recebidos com alegria por pacientes e acompanhantes, pois todos disseram que seria ótimo verem um filme. Início da projeção, olhares na tela/parede e logo percebo que a presença do cinema começa a transformar o ambiente. Uma das pacientes se ajeita no leito,outra acorda e começa a acompanhar o filme e a uma das acompanhantes chega a se acomodar na poltrona. Contudo, ainda estamos em uma enfermaria e as peripécias de grande Otelo e Oscarito não impedem que todas as práticas técnicas ocorram, nem que o sofrimento aconteça. E é assim que, ao mesmo tempo em que rimos com o carnaval na tela, sofro com um visitante, que vai ver uma paciente e ,não aguentando, precisa ser retirado, pois cai no choro. Da mesma forma, em um canto da enfermaria, o senhor acorda e passa o restante do tempo em que estamos ali chorando de dor, algo que angustia e entristece. Enquanto isso, profissionais de saúde, atraídos pelo som, acabam sorrindo ao verem o filme na parede. Logo chega o horário de terminar o filme devido ao adiantado da hora e das visitas. Desligo o projetor e comunico ao “público” que precisamos parar e continuaremos na semana que vem. Reclamação geral. Pacientes, acompanhantes e visitantes dizem que o filme estava ótimo e até mesmo a acompanhante da senhora em estado grave pede que, se possível, a exibição continue. Uma delas me pede inclusive que me traga sua mesa, para que possa lanchar com suas companheiras. Atendida, logo se estabelece uma “sala de estar”, todas acomodadas, sorrindo e conversando, como se estivessem em casa. Me encaminho até a filha do senhor, que continua choramingando e ela, sem deixar de abraçar e acalmar o pai por nenhum minuto me olha e diz que, por favor, continue, porque estava muito bom. Diante de tal quadro nada mais me restava a fazer. Voltei ao projetor,recomecei o filme,para alegria geral. O que dizer, quando pacientes internados,alguns em estado grave e acompanhantes arrasados pelas doenças de parentes consideram importante, fundamental, que o filme continue?Assistimos juntos a desempenho de Oscarito e Grande Otelo e, ao final, pude perceber o quanto fora importante continuar a exibição. Com sua dança, música e humor, Carnaval Atlântida atravessara o cotidiano da enfermaria, não para negar ou fingir que a dor e o sofrimento não existiam, mas para transcendê-lo. No momento em que uma filha,abraçado ao pai doente, fixa seus olhos na tela, não desconhece sua dor, mas parece tornar-se mais forte. O filme assim cria um novo território, paralelo à realidade, não para transformá-la, mas ao menos tornando-a suportável.

Cinema no IPPMG- 14/11/2015-Cinema para ver, sentir e pegar

Entrar em uma enfermaria de crianças acamadas significa encontrá-las quietas,amuadas, deitadas em seu leito,correto? Tal definição não poderia estar mais errada. Na enfermaria B, onde fui hoje,pela primeira vez sozinha, o quadro era o mais distinto possível. Pra começar, brinquedos espalhados por todo o chão. Além disso, velocípedes infantis (três,para ser mais exata) dividiam espaço com enfermeiros,médicos,pacientes e acompanhantes e durante todo o tempo em que estive pela enfermaria, ouve um troca-troca de crianças, apostando corrida ao longo do espaço disponível do hospital. Nesse ambiente, propor uma atividade mais tranquila como um filme pode parecer contraditório. E é.Mas há que se acreditar no poder da imagem para convocar os olhares,mesmo aqueles tão pequenos que se sentem encantados pelo mundo a tal ponto de não conseguirem fixar-se em atividades por mais de alguns minutos. E ,mais do que isso,é preciso crer no caráter de novidade quando se abrem as caixas de equipamentos e se monta o cenário, próximo ao que alguns conhecem como cinema.E então vem a grande surpresa:a experiência do cinema que conhecemos é totalmente subvertida pelas crianças da enfermaria. Para eles, a narrativa do filme chega a ser desimportante. A magia consiste então na luz, que os encanta . Logo,assim que o filme começa, muitos vêm correndo, os olhos fixos no projetor, para experimentá-lo,compreendê-lo. E já são muitas mãos tateando o equipamento até o momento mágico em que descobrem que podem interagir com a projeção,alterando-a e até interrompendo-a quando bloqueiam a luz com as pequenas mãos.São muitos risos , no encantamento da descoberta ,pois se dão conta de que podem assim contar sua própria história. Curiosos, tocam a superfície do computador,seguem a direção dos fios e ,pronto! Descobrem as caixas de som.Enquanto peço que tomem cuidado com o ouvido,com os olhos, para que a luz não os incomode, lançam-se com o destemor da primeira infância, postando-se de olhos bem abertos na frente do projetor,como se quisessem mergulhar na luz, apreender os mecanismos de seu funcionamento. Riem muito, de fechar os olhos,quando conseguem interromper o filme e fazem sombras, apontam uns para os outros, criando novas histórias, provavelmente. O cinema, mais do que narrativa,torna-se um brinquedo tátil, manipulável, um território onde não consigo penetrar. Me posto do lado de fora,observando as apropriações, sendo às vezes convocada para que me mostrem o que descobriram de diferente. Por longos minutos esquecem-se do filme, correm para os velocípedes e recomeçam outra brincadeira. Apenas Kauã,o pequeno cineasta,se aborrece com as interrupções. Para ele o ato de ver e fazer filmes é coisa seria.Ele também se entedia com a exibição dos mesmos filmes,mas me propõe passar uma cena, a final,do seu amado filme dos dinossauros. Cedo ao pedido e algumas crianças se incomodam com a exibição nada delicada do Tiranossauro Rex na tela, mas assistem ao filme curiosas. Ao final, proponho passar Kiricoum, animação francesa que consegue afinal captar a atenção de gregos e troianos. A maioria das crianças se senta,ainda que nos velocípedes e assiste inacreditáveis 60 minutos de filme,interagindo com a história ate o final. Mérito da história,mas também das cores e músicas que enriquecem o filme. Em nenhum momento o projetor deixou de ser manipulado,assim como os demais equipamentos.Mais do que cinema para ver,fazer e refletir, hoje percebi uma materialidade na imagem e uma necessidade de compreendê-la que, no caso das crianças, é tátil, convoca todos os sentidos. Nesse experimentar eles inserem-se na experiência, fazendo-se parte da imagem, alterando-a ,tornando-a um objeto de seu vasto imaginário. E eu, que ali chegara com a ideia de oferecer uma experiência cinematográfica, percebi que acabara de testemunhar uma vivência sensível, em tudo isso que sensível quer dizer, posto que cada sentido fora convocado, gerando novas imagens e territorialidades.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Uma tarde no H.U com Caetano e Chico

Territórios sensíveis-11/11/2015-Cinema no HU. Enfermaria 9A-23




Em 1967, ao adentrar o palco do Teatro Record, Caetano Veloso foi surpreendido por uma estrondosa vaia. Não se tratava de uma represália somente ao cantor, ou sua música. A vaia era tida por muitos como instrumento de manifestação popular diante de uma ditadura militar que se configurava mais demorada do que pareceu inicialmente. Ainda assim, sorriso no rosto e os famosos caracóis ao vento, o cantor baiano prosseguiu na canção, sem deixar de sorrir por um momento sequer. Saiu do palco aclamado pela multidão, enquanto repetia “eu vou, por que não,por que não”, versos de Alegria,Alegria. Parece incrível que, em meio ao calor, às enfermidades, ao cansaço e à rotina de um grande hospital a música se sobreponha como narrativa, mesmo que por alguns momentos. Mas sim, enquanto exibíamos Uma noite em 67, documentário de Renato Terra e Ricardo Calil, a maior parte dos pacientes acordados acompanhava a evolução de Chico Buarque, Edu Lobo e Caetano Veloso, em vídeos de arquivo e entrevistas gravadas em off. Uma das pacientes, empolgada, citava fatos da vida de cada artista enquanto as acompanhantes comentavam cada apresentação. Logo aparecia na tela (a parede da enfermaria, diga-se de passagem) a imagem de um Roberto Carlos em seus 20 anos, o que levantou exclamações de todas as presentes. Mas foram os belos olhos azuis de Chico o componente que alimentou o devaneio feminino naquela enfermaria.Chico, afinal de contas ,é e sempre vai ser Chico. Poderíamos dizer que estávamos em uma sala de exibição ou sala de estar como outra qualquer, em que comentávamos umas com as outras os sucessos na telinha ou na telona. Contudo, estávamos na enfermaria do Hospital Universitário, onde a cada minuto profissionais de saúde entravam para procedimentos, pacientes entravam e saiam e até um aparelho de raio-X irrompeu no local. Em dado momento, a paciente mais grave precisou ser submetida a um procedimento delicado, sendo atendida por uma profissional que, apesar de permanecer atenta ao trabalho, permitiu-se cantar os versos de Caetano. Alheio a tudo isso, o filme continuava sua narrativa e Sérgio Ricardo quebrava seu violão em pleno palco. A cada cena, as pacientes e acompanhantes lembravam de um fato,uma historia,comentando umas com as outras.É impossível assim não lembrar de autores como Muniz Sodré que fala sobre os meios como formas vinculativas e pensar que o cinema ali naquele ambiente permite experiências compartilhadas, potencializadas pelo uso da música.Assim, um breve olhar aos rostos nos primeiros acordes das canções permite registrar o instante do reconhecimento, como se o som ativasse imediatamente uma memória,um afeto. E cada uma das presentes vira-se para a outra, perguntando: você lembra?Também eu me lembro das músicas da década de 1960, que conheci ainda muito pequena. Era esse o recurso da minha mãe para que eu conhecesse a história recente do Brasil. Em minutos passaram pela minha cabeça as tardes na sala de casa, entre discos de Gil, Caetano e Chico e as peças de escola, em que eu sempre buscava temas que envolvessem a ditadura militar. Nem nos maiores devaneios me passou pela cabeça que, em algum momento da vida, eu estaria exibindo as canções da minha infância para pacientes internados, principalmente pelo fato de que a área de saúde jamais foi uma opção de carreira para mim. Assim como “A roda viva” de Chico Buarque, “ o mundo girou” e me colocou ali em plena enfermaria do HU, vivenciando uma experiência sensível, em tudo isso que sensibilidade quer dizer, posto que, ao passo que o filme convida ao devaneio, há realidades que não podem ser ignoradas e acabam sendo incorporadas à narrativa do filme. Enquanto cantávamos Roda Viva,uma menina,que voltava de um exame desmanchava-se de chorar,ao telefone. Sua mãe, uma das mais animadas espectadoras do filme enquanto a filha estava ausente, em dois passos teve que se deparar com a dura realidade da doença da menina e seu desespero. A tudo isso é possível assistir na enfermaria e por vezes as histórias são tristes demais para que possamos suportar. Mas é preciso persistir e deixar que a música faça seu trabalho, invadindo aos poucos o ambiente, propondo novas territorialidades e tornando o cotidiano mais leve, em alguma medida. Penso que esse também é o papel da cultura e da comunicação, enquanto experiências que convocam o sensível e propõem um instante de silêncio em meio ao caos cotidiano. Uma vez que se deixa a música e a imagem entrarem, tempo e espaço se fazem subitamente outros, assim como nós.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Lições de Humanidade: 04/11/15-Enfermaria geriátrica do HU- Enfermaria-9A. 27



No filme o grande ditador, Charles Chaplin, em seu último discurso, teria dito: “Mais do que máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.” (O grande ditador, Charles Chaplin, 1940). É impossível adentrar a enfermaria do Hospital Universitário e não se lembrar dessas palavras. Principalmente quando a sua tarefa envolve a prática do cinema.Por todos os corredores do hospital, profissionais e pacientes atravessam o mesmo espaço, trocando palavras, realizando suas tarefas diárias e sendo atendidos, de acordo com a necessidade de cada um.Muitas vezes, o cotidiano parece “enevoar” cada contato, distanciando os sujeitos envolvidos nessas atividades. E então se assiste ao desfile de “desumanidades”, quando pacientes são vistos como tarefas e profissionais de saúde como detentores de técnicas, sem que um ou outro possa se dar conta do que esta acontecendo de errado. No momento em que entrei na enfermaria, um profissional auxiliava outro (provavelmente estudante) na execução de um procedimento. Enquanto a estudante realizava sua tarefa no corpo do paciente, o profissional absorvia-se em seu próprio celular. Poucas palavras são trocadas, além do necessário para que a técnica por si realize seu trabalho. È nesse ambiente onde monto o equipamento de projeção, imaginando quem iria acompanhar o filme, uma vez que dois dos pacientes dormiam e outra estava em meio a um procedimento. Restavam S. e J., que concordaram em assistir à projeção. Joselma, inclusive, desligara a TV. O filme escolhido? “Vida de Cachorro”, de Charles Chaplin. Na história, Carlitos percorre sua trajetória na companhia de um cão, encontrando uma jovem, com quem se casará ao final da narrativa. Antes, porém, enfrentará dissabores, como a fome,o cansaço e a falta de dinheiro.O pior de tudo:a falta de humanidade das pessoas com as quais o personagem convive. Como sempre acontece, quando a música toma a enfermaria, a linha tênue entre a narrativa na tela e a realidade parece se esgarçar ainda mais. Arrisco imaginar que a trilha sonora compõe com perfeição as ações da enfermaria, permeadas de drama e alguma comédia, por vezes. Assim, S. e J. seguem as aventuras de Carlitos, enquanto V. ,uma senhora que dormia quando chegamos, abriu os olhos e me parece prestar atenção em tudo que fazemos, embora a enfermeira comentasse de seu estado de “ausência”. Também ocorre ver profissionais de saúde adentrarem a enfermaria e, surpresos ante o filme que está sendo exibido, esboçarem reações curiosas. Muitos sorriem, chamam a atenção uns dos outros e por alguns minutos acompanham a projeção. Outros, como o profissional que realizava o procedimento na enfermaria, parecem alheios ao movimento. Enquanto isso no filme, Carlitos tenta conseguir um bocado de comida, para ele e seu cachorro. Olhos atentos, S. e J. concentram-se na tela e até a enfermeira que me acompanha, de bom grado continua ao meu lado, seguindo a narrativa com interesse. O filme acaba e V., a paciente “ausente”, recebe duas visitas que, espantadas com o comportamento dela, perguntam se ela nos conhece, pois fixa seus olhos em nós. Comento que ela não me parece assim tão “desligada” e me arrisco a dizer que V. acompanhara bastante do filme exibido. Por sua vez, S. e J. dizem gostar muito do filme, principalmente por tratar-se de uma história envolvendo um cachorro. Despedimo-nos e volto para casa pensando ainda nas palavras de Chaplin: ”mais do que técnica, precisamos de humanidade”. Assim, mais do que somente procedimentos técnicos, o que os paciente necessitam parecem ser mãos estendidas, ouvidos que possam ouvir e olhos que possam vê-los, entrarem em contato, compartilharem o momento. Dessa forma, começo a compreender a ideia de território sensível como mais do que um espaço material, localizado entre paredes, mais um espaço afetivo, determinado pela experiência compartilhada e pelo afeto que se troca, não só durante o filme, mas apesar do filme que é exibido. Territorializar seria então uma forma de coabitar o outro, tocar o sensível, trazer suas memórias e afetos à borda, compartilhar um tempo comum. E se o cinema pode constituir este espaço, ele o fará não somente por tratar-se de uma experiência sonora e visual, mas efetivamente sensível, posto que permita o contato com o outro, enxergá-lo na mesma medida em que enxergamos a nós mesmos, dividindo a mesma vivência, seja com as agruras de Carlitos, seja com as relações cotidianas na enfermaria. Logo, realidade e ficção, ao entrarem em contato, diluem-se em alguma medida, possibilitando não somente a fruição estética, ou a “distração”, tão necessária a pacientes e profissionais de saúde, mas o exercício de reflexão no qual o olhar sensível traça uma comunicação entre mim e o outro. A comunicação se faz quando os pacientes comentam o filme, agradecem, falam de suas partes preferidas mas, principalmente, quando vejo que seus olhos foram captados pela história e conseguiram levá-los além de sua condição hospitalizada.Ao término do filme, quando sorriem, sem que seja necessário uma palavra além, encontramo-nos,eu e eles, irremediavelmente modificados.

sábado, 24 de outubro de 2015

Territórios sensíveis- 20/10-HU- enfermaria 9-27 Quando a música convoca o olhar

Adentrar um grande hospital não é tarefa fácil para os “não iniciados”. A saber, aqueles que não são profissionais de saúde. A começar, tem as grandes filas para os ambulatórios e a expressão de cansaço e tristeza que cerca cada paciente dali. Depois, os corredores frios, onde os jalecos brancos revezam-e sem cessar e eu me perco, tentando encontrar a porta certa. Depois de longos minutos percorrendo corredores, carregando o equipamento de projeção, finalmente encontro a sala correta. Já nos corredores da enfermaria, somos avisados de que não será possível voltar à enfermaria onde estivemos semana passada porque infelizmente houve um falecimento e as demais pacientes encontram-se dormindo ou sedadas. Automaticamente a imagem da paciente que morrera vem em minha memória e seus olhos assustados me comovem. A sensação de impotência que me deu, ao contemplar seu rosto, retorna naquele momento e por alguns minutos sinto um enorme cansaço. Mas é preciso continuar e partimos para outra enfermaria. Ali estão quatro pacientes, sendo que duas dormem. Há também duas acompanhantes. Tentando driblar o pânico inicial de estar ali pela primeira vez como a responsável pela exibição do dia, começo conversando com elas, falando um pouco sobre o filme que verão. Para aquela exibição pensei em continuar o processo de dialogar música e história do cinema, trazendo o filme Cantando na chuva.Ao contrário do que se pensa, o filme não é apenas um musical, mas fala da própria indústria cinematográfica, relatando com bom humor um momento particularmente emblemático da história do cinema:a passagem do cinema mudo para o cinema sonoro, pelos idos de 1930. Filme a postos, se iniciou a exibição e nos primeiros minutos parece impossível que consigamos vivenciar a experiência fílmica em alguma medida. Pra começar, fazia um calor senegalesco na enfermaria que, para piorar tudo,era intensamente iluminada. Para piorar, alguns elementos na aprende dificultavam a leitura da legenda. Sobrava aos profissionais de saúde o encantamento com o filme, entrando na sala e fotografando e pedindo que voltássemos para fazer uma sessão em uma sala melhor. E quando o desânimo começava a me dominar, o filme mostrar uma cena de dança entre Gene Kelly e Debbie Reynolds. E então meu olhar percorre a enfermaria e vê que todas as pacientes acordadas acompanham, cada uma a seu modo, a narrativa que se desenrola na “tela”. Até as acompanhantes arrastam as cadeiras para poderem ver o filme e inclusive (suprema vitória!) deixam de lado o celular. Enquanto o filme se desenrola ouço um ruído num canto da enfermaria e vejo que a paciente que dormia, embora tivesse dificuldades motoras, ergue as mãos até acionar os botões do leito e vai devagarzinho posicionando-o para que possa ver melhor a tela. É impossível não me emocionar. Depois de quase uma hora de exibição é necessário interromper o filme (que tem 02h40min de duração). Converso com as pacientes e todas afirmam terem gostado muito da história e me agradecem bastante. Inclusive a que movera o leito, que me parecia não querer ou não poder se comunicar me olha e sorri agradecida. Saio da enfermaria com o coração leve, pensando nos motivos que possibilitam o interesse e a vinculação. Talvez tenha sido o inusitado de um filme em uma enfermaria adulta. Via de regra, são as enfermarias infantis que concatenam os olhares e têm seu espaço disputado por inúmeros projetos e pessoas que vem oferecer seu carinho e seu tempo. Aos adultos, geralmente, resta o silêncio e as horas infinitas, somente sendo rompidas pelo cotidiano de procedimentos e remédios. Vez em quando, um caso mais grave afeta toda a enfermaria. No restante do tempo, a espera longa, pela cura ou pela morte. Em cada esquina o cansaço parece ser a única certeza nos rostos mas, se chegarmos bem perto,veremos surgirem, ainda que enevoados por camadas de rotina, laços afetivos, que se formam em sorrisos de reconhecimento ante pacientes e profissionais de saúde, entre os funcionários do hospital e todos aqueles que de algum modo participam daquele ambiente. O cinema então se torna mais do que uma imagem, potencializa-se pela sua instância musical, que convoca os olhos e abre espaço para o afetivo e a memória. Não se trata somente de uma experiência que interrompe a passagem do tempo, mas a ressignifica, torna-a sensível, posto que saia da imagem projetada na parede e vai, um a um, chegando ate os rostos que contemplam o filme. Em cada expressão emocionada, uma teia da rede de afetos, que constroi um pertencimento simbólico, território sensível, feito de musica e sonhos, que afeta a todos que estão ali mesmo que por alguns minutos. Por alguns momentos, ante os corpos que dançam e as vozes que cantam, estamos irremediavelmente em comunhão.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Cinema no HU- Abrindo as portas da memória

Se a experiência com crianças em enfermarias pode ser algo transformador, ainda mais surpreendente é a proposta de exibição de filmes em enfermarias com idosos. Logo, se com as crianças o apelo ao lúdico é um componente básico de acesso, para os idosos, pesar a mão nas brincadeiras pode ter efeito contrário, afastando e emudecendo os pacientes. Mais do que nunca, é necessário encontrar uma linguagem que possa atravessar os muros de silenciamento ,cansaço e tristeza e falar aos afetos dos pacientes. Hoje, no primeiro dia de retomada do projeto de Cinema no Hospital Universitário, uma linguagem foi escolhida: a música. A enfermaria escolhida foi a 9A , com quatro senhoras internadas:Lucia, Elair, Severina e Teresinha.De todas, apenas Severina manifestou vontade de assistir o filme, embora Teresinha tenha falado que adorava cinema, mesmo não lembrando bem qual era seu filme preferido. Nota-se, talvez devido à idade, uma grande lacuna nas narrativas dos idosos, em contrapartida às interações com as crianças. Alguns reclamam de dores, outros têm o olhar perdido, sem responder às perguntas da equipe do CINEAD.Entre os profissionais de saúde, contudo,a expectativa é grande e muitas moças se acumulam na parede da enfermaria, movendo leitos e retirando cadeiras do caminho para que o projetor possa ser montado. E após uma breve explicação sobre a história do cinema e a exibição dos primeiros filmes dos irmãos Lumiére,a escolha do dia, feita pela coordenadora do Cinema no IPPMG:A música segundo Tom Jobim(SANTOS, 2012).Foram necessários apenas os primeiros acordes de bossa nova para que os semblantes,como mágica, se suavizassem.E enquanto Severina acompanhava atenta as músicas que iam se desenrolando na parede,Elair, que dormia quando chegávamos e chegara a resmungar quando começou-se a falar sobre cinema, abriu levemente os olhos e se pôs a escutar.Em dado momento, enquanto a voz de Gal Costa entoava “Se todos fossem iguais a você”, a senhora começou a cantar. Do outro lado da enfermaria, uma residente cantava e dançava, discretamente. Em seguida, a bela canção “Eu não existo sem você” era interpretada por uma cantora que não foi imediatamente reconhecida por muitos de nós.”Elizeth Cardoso” ,alguém lembrou!As imagens de um Rio de Janeiro mais poético e infinitamente mais belo dialogavam com os sons de Tom e Vinicius, encantando a todos e era quase como se a música irrompesse pelos corredores do hospital, sempre tão cheio de dores e espera, convocando os olhares de todos que passavam por aquela enfermaria. E um silêncio profundo fez-se, quase como se a música, como linguagem universal, criasse um imaginário de memória coletiva, sensível, tocando-nos a todos, sem diferença de idade ou estado de saúde. Em algum lugar da memória de cada um aquelas musicas faziam eco, reverberavam, criando uma vinculação quase palpável entre nós. E então, infelizmente, foi hora de ir embora,ao som de “Garota de Ipanema”. Em todos os rostos a música e a memória deixaram uma marca. Mas foi de Elair( a senhora que se mostrara mais arredia no início) a expressão mais doce e o agradecimento com o pedido para que voltássemos . Também Lucia pedira,se possível, para que trouxéssemos Elis Regina. Parodiando Joao Gilberto e já apontando para a programação da próxima semana,fica a pergunta:Chega de saudade?Para nós, a saudade, embalada pelo afeto e pela musica,traçou um caminho preciso entre nós e os pacientes, criando um território de possíveis. texto escrito ao som de Eu não existo sem você. Música de Tom Jobim.Interpretação de Maria Bethânia https://www.youtube.com/watch?v=dpiC2uHgKpE

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Territórios sensíveis- Enfermaria C-09/10/2015

http://territoriossensiveis.blogspot.com.br/2015/10/territorios-sensiveis-enfermaria-c.html “-Minha doença não tem cura”, me disse D. ,10 anos,me olhando profundamente nos olhos, enquanto manipulava o taumatrópio. “-É por isso que venho para o hospital”. Surpresa, sem palavras, respirei fundo e disse, também olhando-a nos olhos: “- Sim, mas isso não te impede de ser feliz”. Ela apenas me olhou e concordou com a cabeça. Em seguida continuou girando o brinquedo. Ainda agora, horas depois de ouvi-la, sua frase continua ecoando em meus ouvidos. O que fazer qual palavra, qual gesto poderia confortá-la?Me senti impotente, sem forças, com vontade de carregá-la no colo ou de sair correndo. Havia sido uma longa tarde, de alguns sustos e bastante tristeza. Afinal, já entramos na enfermaria com o murmurar de vozes que falavam sobre a morte de uma menina. Na mesma hora,um desespero me invadiu, tentando repassar todos os rostinhos já conhecidos, temendo pela confirmação da identidade do óbito e já arrasada pela simples ocorrência de uma morte. Crianças mais do que ninguém, não devem morrer. Sua existência deve ser permeada de experiências entre as quais não devem estar de jeito nenhum a doença e a morte. Entretanto,as enfermarias do Hospital Universitário recebem todos os dias famílias, pelos mais variados motivos.Entre elas,Rebeca,Pâmela,J., Nina e a bela D.. Ainda na semana passada D nos contara uma história sobre uma menina que, ao entrar no hospital,logo logo saia e voltava para casa.Infelizmente,essa semana ela ainda estava lá.Com ela,várias outras, em diferentes estados de saúde e ânimo. Enquanto organizávamos o material, a mãe de uma das crianças questionava um profissional de saúde sobre algo referente a filha. . “Tomorrow”, foi a resposta do profissional. .”Não falo inglês”, retrucou a moça, contrariada.Esse breve diálogo parece uma metáfora das relações no hospital.Para entrar em contato é preciso dominar um código comum,falar a mesma língua.Nesse viés a comunicação parece ser um componente fundamental para que sejam construídas pontes entre os sujeitos .É nesse lugar em que o cinema pode verdadeiramente ser útil,posto que propõe ligações sensíveis entre quem se aproxima dele ou através dele,mesmo que por vezes a realidade atropele tal relação. Assim foi durante a exibição do filme Leonel Pé de Vento. Enquanto R.e K. assistiam ao filme, J., que fazia diálise, gemia de dor,enquanto a mãe a acalmava. Seu pequeno corpo se contorcia e ela parecia a cada momento mais frágil.Entre os fios que a conectavam à máquina de diálise,o sangue (que, segundo a equipe responsável, já devia ter parado de sair), seguia tingindo de vermelho os tubos. Foi então que seus olhos encontraram a tela e não se despregaram de lá por um bom tempo.E logo juntou-se às crianças D.,trazendo consigo o equipamento no qual estava conectada. Sonolenta,tristonha, caminhando devagar,mas, graças a Deus,viva.A menina veio lentamente sentar-se para assistir o filme.Ao final de Leonel, bem no inicio de Josué e o pé de macaxeira,escolha de D.,fomos interrompidas pela equipe médica para realizar uma punção.D. ficou muito triste e só se animou um pouco ao dizermos que interromperíamos o filme para que ela pudesse ver quando voltasse.Durante todo esse tempo, J. não parava de gemer. E então a notícia que ainda mais nos entristeceu: Se aproximando de nós,uma das enfermeiras pediu que colocássemos legenda no filme.É que há duas semanas, a doença de J. afetara sua audição.Enquanto a responsável pelo CINEAD pensava em um filme com legendas, um grito nos assustou:pensamos ser D., mas era um dos meninos do outro lado da enfermaria, que passava por uma transfusão. A coragem da pesquisadora do CINEAD é inspiradora pois,apesar de todas as más notícias recebidas, ainda conseguiu propor brincadeiras óticas , no que foi acompanhada pelas crianças. Até mesmo D., ainda que triste, tomou parte na construção de taumatrópios e dobradinhas. Enquanto ajudava, pensei que, por vezes, o trabalho parece não fazer nenhuma diferença.Em alguns momentos,de fato, ninguém parece prestar atenção ao filme. Mas basta que só um rosto focalize o filme por alguns momentos para que tudo pareça fazer sentido. Ao ver suas expressões se modificarem ao acompanhar o filme, tenho certeza da importância de cada etapa do trabalho.Não que as intervenções possam ser interrompidas. Não são.No exato momento em que J. consegue fechar os olhos, um enfermeiro chega para lhe aplicar uma injeção. Felizmente,o procedimento foi rápido e ,até onde pude perceber,bem sucedido.Enquanto isso,Rebeca recorta taumatrópios e conta sobre os desenhos que pregou na parede. Atordoada com a conversa com D. não percebo a importância do gesto. É preciso que a pesquisadora do CINEAD me alerte sobre como é importante a apropriação do espaço pela menina. É dela também o desenho que enfeita a parede próxima a J. Mais do que simplesmente um desenho,é sua identidade que Rebeca coloca ali. Assim como os taumatrópios, quando movimentados, unem figuras diferentes em uma só,também Rebeca, ao colocar seus desenhos favoritos nas paredes, torna seu cotidiano no hospital,parte de sua vida. E enquanto as deixamos recortando e colando os brinquedos óticos, percebo que em vez de buscar nos pressupostos teóricos alguma explicação para a quantidade de experiências vividas hoje,me pego rezando para que finalmente a heroína da história de D. possa enfim voltar para casa.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Territórios sensíveis- 18/09/15. Enfermaria B -Hoje é dia de cinema, bebê!

Contrastando com o calor, o caos e o trânsito de uma sexta-feira tipicamente carioca, o lugar escolhido hoje para abrigar a sessão semanal de Cinema e Hospital parecia um oásis. A começar, o silêncio que cercava o espaço.É que seus ocupantes,quase todos,ainda nem tocam o chão e mal sabem falar. A maioria, aliás, não completou o primeiro ano de vida. Entretanto, encontram-se hospitalizados, junto com seus pais. Eles, os responsáveis, são o foco da atividade de hoje, uma vez que também fazem parte das experiências geralmente direcionadas aos filhos. O público se compunha de quatro pequenos pacientes: Ana Maya, Davi, Maysa e o belo Miguel, em seus prováveis 10 meses de vida. Embora sejam necessários muitos cuidados com os pacientes, a enfermaria B é a mais silenciosa de todas nas quais estivemos. Talvez porque seus ocupantes ainda tirem boas sonecas e manifestem seus desejos costumeiramente através de um choro discreto, que é logo atendido por alguém. Nossa chegada é muito bem recebida e o pai de Miguel comenta feliz que é a primeira vez que seu filho vai ao cinema. O filme escolhido é Kiricoum, uma lenda africana sobre um menino que nasce muito pequeno, mas, apesar do tamanho, vive diversas aventuras e salva sua família e aldeia de uma feiticeira supostamente malvada (#alertadespoiler). Logo na nossa chegada, a mãe de Ana Maya diz que já conhece o filme, mas ainda assim quer assisti-lo. Antes, porém, resta-nos a dificuldade de dar à enfermaria um ar mais cinematográfico, por assim dizer, transformando a cortina da janela em tela de cinema. Tela pronta, luzes apagadas, o filme já pode começar.Logo no início somos brevemente interrompidos por duas moças, que trazem doações de fraldas e objetos de higiene para os bebês e até param por algum momento para ver o filme.Por esse viés, os laços de solidariedade e afeto permanecem reforçando a ideia de territórios sensíveis. E é assim que Miguel, apesar da pouca idade, acompanha o filme (um longa metragem) com algum interesse, mesmo em alguns momentos não se fixando muito na tela, mas no pacote de fraldas, no shampoo, no móbile sobre seu leito, etc.. O mesmo não se pode dizer dos pais,que seguem com atenção as aventuras de Kiricoum e até a enfermeira, que se senta confortavelmente em uma cadeira pra assistir.Parece-nos que a narrativa fílmica,aos poucos e ainda com interrupções, convoca os olhares e convida a uma pausa cotidiana para vivenciar aquela experiência.Nessa enfermaria as interrupções foram menores, apenas com uma ou outra troca de fraldas. É interessante relacionar o tema do filme, um bebê bastante corajoso, com o cotidiano dos pacientes da enfermaria B, também pequenos, tendo que, de alguma maneira, serem fortes para enfrentar o cotidiano no hospital. Também seus pais parecem mais conectados com a experiência fílmica, interagindo com os filhos e o filme, sem deixar de acompanhar cada detalhe da história. Mas, do lado de cada da tela também há narrativas interessantes, quando se nota que é a primeira vez que vemos um paciente acompanhado pelo pai. Via de regra, são mães e avós que ficam com as crianças. No entanto, o pai de Miguel age com naturalidade, alimentando-o e acalentando-o e sendo por sua vez acalentado pelo filme. Em dado momento, pai e filho aconchegam-se em uma poltrona, concentrando-se (dentro das possibilidades etárias de cada um) na narrativa que se desenrola na tela. Da mesma forma, quase todos os responsáveis têm seus olhos fixos na tela, aguardando nosso pequeno herói, Kiricoum, realizar suas aventuras. Em seu filme, ele salva a aldeia e cresce ante os assombrados olhos de seus conterrâneos. Também nós, tocados pela imensa experiência afetiva vivenciada hoje, nos tornamos maiores, mais fortes e mais humanos. É impossível não se sensibilizar ao ver um pequeno bebê como Davi ou Ana Maya ou mesmo os belíssimos Maysa e Miguel, presos a equipamentos de hospital. A simples visão de seus rostos comoveria o mais frio dos sujeitos. A eles resta o colo dos pais e o carinho dos profissionais de saúde. Mas e o pais?Quem cuida deles?Quem pode dizer-lhes que não estão sozinhos e fornecer algum instrumento para que, por alguns momentos esqueçam onde estão e quanto tempo falta para voltarem pra casa?Seria o cinema uma saída possível? Talvez não seja a única. Contudo,daqui de onde vemos,parece ser a mais sensível.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Sobre bolhas de sabão ou : quando correr não é uma opção (Territórios Sensíveis: 11/09/15-Enfermaria C)

A visita de sexta-feira começou em clima mais frio, não somente devido à meteorologia, mas porque, logo de cara, percebia-se certo desânimo no ar. Assim que chegamos, encontramos nosso pequeno cineasta, Pedro, amuado no corredor, pois ia ser submetido a um procedimento cirúrgico. Também Julia, a menina que conhecemos na semana passada, chorava baixinho encolhida no seu leito, no fundinho da enfermaria C.Parecia que nada poderia melhorar o dia deles,nem mesmo uma sessão de cinema.Diante de tal quadro, a possibilidade de passar um filme parecia quase criminosa ou no mínimo ineficaz,mas ainda assim foi necessário resistir.Ao todo, a enfermaria escolhida tinha seis crianças, duas meninas em seus oito anos, uma mais velha, Sara, diagnosticada segundo a própria mãe com hipersensibilidade e dois meninos,que dormiram durante toda a sessão. Foi a mãe de Sara que também contou que como a filha não podia frequentar escolas,usava DVDS de filmes para educá-la. Uma das meninas, Letícia, nossa conhecida, permaneceu em seu leito, como sempre que íamos até sua enfermaria. Ainda assim, quando iniciamos os preparativos para a sessão, postou-se de modo a acompanhar de sua cama o filme que seria exibido.Também Julia permaneceu em seu leito, sob pesadas cobertas,mas acompanhou com algum interesse o filme,chamado A menina e o cachorro flautista.Um acontecimento curioso:a história,que se passava em uma praia,incluía uma cena onde algumas pessoas realizavam um ritual para Iemanjá.Imediatamente a mãe,alarmada, postou-se na frente da filha,para que ela não visse a cena.Ainda assim, o fato da história reunir elementos de filmagem e animação parece captar a atenção das crianças, como uma janela que se abre para o mundo. Até mesmo Sara pareceu se acalmar um pouco durante a sessão. No meio do filme, uma interrupção: entram na enfermaria alguns profissionais de saúde para realizar um procedimento em Julia. Como é de costume,mais uma vez a ciência e suas urgências atravessam a narrativa fílmica no hospital.Ainda assim, quase todos os profissionais pedem desculpas pela interrupção,pois parecem perceber a importância da atividade para crianças tão pequenas,presas por dias,semanas e meses em um mesmo lugar. Há momentos, entretanto em que o lúdico é atravessado pelo cotidiano. Quanto a nós, é necessário fazer-se invisível, não interferir e mais do que isso, procurar não olhar, posto que a visão de corpos infantis machucados sempre é muito dura.Mas é preciso resistir ao impulso de pegar aquela menina no colo,de consolá-la,ou de sair correndo. Mesmo com os olhos baixos ouso imaginar a dor e o incômodo de ter seu corpo machucado sendo manipulado por estranhos. Em uma das poucas vezes em que levanto os olhos, a visão de um amontoado de bandagens e gaze ensanguentadas quase me fazem sair correndo.Melhor não olhar mais,decido. E o cinema, numa situação como essa?Fica ali, no cantinho reservado à imaginação, onde talvez Julia deva estar. É onde eu gostaria de estar também nesse momento, tão forte é a vontade de fazer parar a dor que ela com certeza sente. Como terá se machucado?E essas pessoas, esses profissionais tão jovens, na obrigação de intervir nesse corpo tão pequeno?Agora, em torno do leito de Julia se reúnem seis pessoas. Têm a certeza e a função de salvar o corpo da menina. E sua alma, quem salva?No ambiente do hospital a autonomia dos corpos parece não existir. Mas e a da alma? Seria possível voar ante tantas adversidades?Nesse viés, criar um caminho, uma proposta de narrativa e experiência sensível é timidamente abrir portas ou propor maneiras de a alma poder dar suporte ao corpo. Enquanto o procedimento prossegue, Sara grita interruptamente. No leito ao lado, uma aluna do projeto Alunos contadores de historias lê um livro para Letícia.No meio do barulho em que médicos debatem a ciência, o filme continua e a narrativa lúdica toma novamente o lugar dos processos científicos. No intervalo do filme são realizadas atividades com jogos de montar. Em alguns momentos, é preciso apropriar-se de atividades propostas pelos próprios pacientes, como contação de história ou brincadeiras com massinha de modelar. A mesma mão que chama, que se abre para acenar, também muitas vezes se fecha quando o cotidiano impossibilita a continuidade da brincadeira. E durante todo esse tempo, Pedro permanece no centro cirúrgico. Logo após o filme, Julia foi estimulada a criar um filme com cinco cenas, a partir de um bloco de montar. É interessante perceber que, por vezes, as crianças estão tão fragilizadas que aceitarem participar da atividade é quase um milagre. Mas, felizmente, Julia aceita a proposta da educadora do CINEAD e cria uma história de um cachorro chamado “o cachorro criativo”.É quando,em outro canto, a enfermaria se enche com bolhas de sabão, feitas pela irmã de Sara que viera visitá-la. Ante a visão das bolhas, Sara imediatamente passa a caçá-las, feliz. As bolhas podem ser uma excelente metáfora para os nexos possíveis entre nós e os pacientes do IPPMG: leves, frágeis e por vezes interrompidos abruptamente. Mas ,enquanto existem,são irremediavelmente belos.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Hoje é dia de cinema- 04/09/15

Hoje é dia de cinema?Sim, senhor! Quando se faz a escolha da pesquisa de campo por meio da cartografia, a cada visita saímos e entramos de formas diferentes dos lugares pesquisados e há sempre formas distintas de adentrar o espaço e travar contato com aqueles que ali estão. Há sempre o impulso de não romper o silêncio e o descanso de quem dorme ou de não interferir na organização já existente, mas se assim fosse,como oferecer-lhes a experiência do cinema?É necessário então encontrar a forma certa para poder avançar, conquistando a cada passo mais um pouco de território simbólico. Hoje não foi diferente. Para começar, a quantidade de pacientes tornava qualquer tarefa de longa duração enfadonha para as crianças que, para tornar tudo mais complicado, eram de diversas faixas etárias. A opção escolhida pela equipe de educadores foi pela escolha e exibição de filmes. Filme escolhido, era necessário fechar as cortinas da enfermaria, organizar os assentos e chamar a plateia para assistir. Hoje, curiosamente, não foi necessário levar o filme ate os leitos da enfermaria.Ao contrário. As crianças,provavelmente devido à melhora de seu estado, levantaram quase todas e juntaram-se para assistir ao filme.Assim,acomodada a plateia,começou a exibição do filme e os olhos das crianças concentraram-se atentamente na história que viam desenrolar-se na tela. Em dado momento, ante o surgimento de um personagem egípcio, ouviam-se as observações da plateia, comemorando ou criticando as ações do vilão. Por alguns minutos o espaço do hospital transformou-se em sala de cinema, seja pela organização da plateia em cadeiras estrategicamente localizadas, seja pelo escurinho da sala ou o tamanho da tela. Logo que o filme acabou, iniciou-se uma atividade de jogos de sombras, o que gerou algum conflito entre as crianças, quando duas resolveram escolher a mesma boneca de palitos. Brigas. Reclamações. Choro. Então a mãe de uma das conflitantes,uma menina de seus 3 anos, resolveu oferecer-lhe uma massinha de modelar. No gancho da ideia, propus que contássemos uma história de animação com a massinha. Aos poucos, enquanto eu tentava dar uma forma remotamente parecida com um coelho à massa, as lágrimas começaram a diminuir e logo se espremeu entre as bochechas da pequena paciente um sorriso. Logo, interagíamos com os bonecos de palitos e fomos até a tela, levar o “coelho” e os bonecos para o centro da narrativa. Brincando de sombras, mostrei que podíamos criar coelhos com nossas mãos e com os bonecos de palitos. A menina, agora rindo bastante, pareceu adorou a diversidade das atividades, embora, verdade seja dita, não prestou tanta atenção ao filme exibido depois. Necessário dizer que passei o restante do tempo refazendo infinitas vezes o coelho que a cada momento tinha uma aparência diferente. E então se torna mais claro o verdadeiro recorte comunicacional da prática no hospital: entrar em contato, chegar ao outro é também e principalmente saber ouvir suas demandas, acordar um nexo em comum, mesmo que não seja necessariamente a partir da experiência fílmica, mas pelo caminho da sociabilidade. O mais importante parecem ser as narrativas criadas, laços que vão aos poucos gerando amarras entre os participantes e nós. É preciso estar sempre alerta para perceber em cada gesto, em cada palavra uma porta a ser aberta, uma possibilidade vinculativa. Nesse viés,a razão sensível torna-se o elemento fundamental para observação.A menina, dona de um coelho que se refazia muitas vezes, sorria feliz. No final cada criança voltou para sua cama, os objetos foram guardados e a menina do coelho, saltitante, voltou para sua casa, pois ganhara alta.

Territórios sensíveis- 21/08/2015 - Sobre narrativas, silêncios e, claro, dinossauros



Você sabe a diferença entre o Tiranossauro Rex e o Velociraptor?Pedro sabe. Para o menino, em seus oito anos, o que distingue os dois espécimes de dinossauros é que, enquanto o velociraptor efetua sons para atrair seus semelhantes, o T-Rex não se comunica com ninguém, pois seu instinto malvado o leva a não se relacionar, a não ser para a procriação. Foi assim, com a sapiência de um paleontólogo que Pedro me explicou porque não podia dublar o temido dinossauro, em mais um exercício de linguagem fílmica. E partiu do menino a ideia de fazer uma dublagem, uma vez que questionou qual seria o nome técnico da ação de colocar vozes diferentes em personagens de filmes. Informado que se tratava de dublagem, logo quis associar à sua imagem o som de seus animais mais amados: os dinossauros. Câmera a postos, dinossauro nas mãos, ele efetuou sua mis-èn-cene e logo pediu para ver o resultado. - Gostou Pedro? -Sim! Essa foi a sorridente resposta. É fato que foi necessário um pouco de paciência para chegar até ele, pois Pedro revela sua autonomia em pequenos gestos, como o de responder ou não uma pergunta ou permitir que nos aproximemos dele. Da mesma forma, não aceita realizar qualquer atividade, somente aquelas pelas quais se sente verdadeiramente atraído, no seu tempo próprio de interesse. Já se tornou comum ouvi-lo dizer, para cada um dos educadores que aparecem pela enfermaria:- “Não, não quero agora” e, logo depois, curioso pelo que se vai passar, abandonar sua atividade anterior e prosseguir na nova proposta como entusiasmo e muitos (muitos!) questionamentos. Assim foi nessa sexta-feira. Pra começar, ele não queria ver o filme que havia feito, o mesmo filme em que havia atuado, dirigido e escolhido cada uns dos sons da narrativa. Primeiro vinha o desenho que estava assistindo, o que a equipe considerou muito justo.Fim do desenho, ele chama uma das educadoras para ver o seu filme. Interfere em cada etapa, opinando com propriedade sobre o resultado esperado, critica elementos, pede outros e, no final, gosta do que vê. “-Parece até filme de verdade”, exclama, felicíssimo!Uma vez aberta a porta, não há limite para a quantidade de filmes que Pedro quer ver. Ele vê todos, concentrado e em silêncio, sem despregar os olhos da tela, mesmo que, vez por outra, alguns elementos estranhos se unam à narrativa do filme, como as silhuetas dos profissionais de saúde que vem checar seus aparelhos. Mas nada se compara a sua expressão de felicidade quando pede que se coloque seu filme predileto, Jurassic Park. Ele comenta cada segundo, da abertura do DVD às primeiras cenas, chamando insistentemente a mãe, semi-adormecida do seu lado, para ver o filme com ele. Felicidade que não se altera, mesmo que ele tenha que ser interrompido para lanchar, ou para que confiram as informações nos aparelhos que o mantém vivo. Da mesma forma, mesmo que veja filmes repetidos, escolhidos no cardápio das atividades de cinema, seu rosto se mantém impassível,imerso na história, seus olhos ligeiramente arregalados quando vê algum elemento que lhe chama atenção. Hoje Pedro tem um companheiro, Gabriel, que em seus quatro anos resiste o quanto pode a manter-se quieto em sua cama. Sob os apelos da mãe,escolheu um filme para ver, “Ernesto no país do futebol” e então sossegou. Ao longo do filme os dois rostinhos não desviaram um só minuto da tela, acompanhando as evoluções de meninos brasileiros e argentinos, que disputavam um jogo de futebol. Tão concentrado estava Gabriel que nem ao menos notou quando a mãe saiu por um momento, tanta a conexão criada com o filme, como se o ambiente hospitalar, transformado em sala de cinema peculiar, fosse aos poucos convocando cada sentido dos meninos, trazendo seus olhos para frente da tela e vinculando-os às narrativas. Aqui os territórios de sensibilidade vão pouco a pouco se constituindo diante de nossos olhos, quando as histórias vistas e vivenciadas trazem um recorte de mundo, um personagem diferente, que se mistura ao cotidiano dos meninos. O cinema nesse ambiente é quase como uma alfabetização de sentidos, um espaço que se cria entre pessoas, culturas e narrativas, que as refazem silenciosamente, a cada filme visto. Também eu me refaço a cada dia, a cada experiência, traçando novos mapas de observação. Assim, novos recortes sensíveis se reorganizam, convocando meu olhar e sensibilidade para além do filme, mas para o espaço em que este é exibido e para os sujeitos que ali estão. Há múltiplos elementos que se relacionam e interações ainda não desvendadas, como os profissionais que interagem com os pacientes, não na ação técnica da necessidade, mas no percurso afetivo, de um brinquedo que se traz, em uma conversa retomada. Por trás dos afazeres que se encarregam de garantir a permanência da vida, há portas que se abrem,quando profissionais e pacientes se encontram, conversam e reforçam laços afetivos e portas que também se fecham, na constatação de que não é possível a um só tempo abarcar toda a complexidade do cenário. Há sempre o silêncio e o inexplorado, aquilo que não se ousa compreender, como duas crianças, que dormiam enquanto ali estávamos, sem que ninguém estivesse com elas. Uma delas era uma menina de aparentes seis anos, cujo pequeno corpo tremia, enrolada em seu cobertor rosa. Frio?Medo?Enfermidade? Tudo isso junto, talvez. O fato é que estava só em uma enfermaria, sem responsável que a acompanhasse, como informou a médica, pesarosamente. E então enxergo subitamente a enormidade daquele espaço, onde diferentes histórias se cruzam. Há silêncios e dores que não podem ser minimizados pela simples proposta de atividades e ausências que o filme não pode exterminar. É preciso ir além, pensando em formas de fazer a experiência sensível chegar até essa criança, não para que a vivência fílmica se torne transformadora, critica ou ética, mas para que seu cotidiano se torne mais humano, preenchido de alguma forma de afeto.Essa talvez seja a tarefa mais básica, mas também a mais importante a ser realizada.

O pequeno cineasta-09/08/15

Pedro é um pequeno cineasta. Em seus oito anos, já sabe dividir uma história em pedaços, pensar em cada etapa do roteiro e acrescentar elementos para dar mais emoção à narrativa.Além de cineasta, Pedro tem mais duas paixões: filmes de terror..E dinossauros!
Costuma dizer que ninguém sabe mais de dinossauros do que ele. Realmente, o menino não somente enumera uma dezena de nomes diferentes, quanto cria os que não consegue nomear. Não satisfeito, desenha heróis que são metade dinossauro, metade gente.
Hoje, Pedro quis fazer um filme. Ele,parou, pensou, coçou a cabeça até descobrir,no fundinho da memória, um sonho que envolvia tubarões, colares, a morte da tia e,claro,dinossauros.Com um papel na mão,ele explicou claramente o que queria:dois dinossauros, que travaram uma luta de vida e morte.Levaram-no até a câmera.Ele pediu uma cadeira ,das de diretor, com nome nas costas.Deram-lhe a cadeira. Então ele pediu a claquete. Espanto geral.Mas como esse menino tão pequeno sabe o que é uma claquete?
- Sei sim, disse Pedro. Vi num filme. E serve para cortar os filmes em partes. Os adultos perto dele emudeceram de espanto. Mas havia um filme a ser feito. Pedro sentou-se, pediu que lhe ajustassem o tripé, colocou a câmera no ângulo que lhe pareceu correto e recomendou ao ator a forma como ele devia entrar. Sim, Pedro tinha um elenco em seu filme, formado de um adulto que seria regiamente remunerado pelo cachê que o concentrado diretor foi buscar à gaveta mais próxima: uma bala de café.
Ajustados os aparelhos, ensaiado o ator (o diretor deixou claro que não queria usar bonecos como personagens. Queria o uso de sombras projetadas pela luz em um biombo de tecido). E assim foi. Quando tudo estava pronto no set ele ergueu as mãos, bateu palmas e disse: ação! Em poucos minutos, fora gravada a primeira cena. Então Pedro se levantou, postou-se atrás do biombo para representar o segundo personagem e novamente comandou a claquete:Ação!
Cena filmada, o diretor quis ver o resultado e gostou do que viu. Então, categoricamente, perguntou:onde meu filme vai passar?Quando disseram que poderia ser enviado para um festival que exibia filmes em praças, ele interrompeu imediatamente:- Não, não quero praças, quero uma sala, de cinema. Grande,escura,cinema mesmo sabe?
Ante o silêncio de todos (aqueles silêncio típico dos adultos quando ouvem grandes verdades das crianças), Pedro pagou o cachê do ator e voltou pra sua cama, feliz com sua obra, não sem antes ouvir a promessa de que teria seu filme editado e entregue na semana que vem.
Ele estará na mesma cama na semana que vem, que por acaso é dia de seu aniversário. E estará na próxima e na próxima também. Pedro é mais um dos pacientes internados na enfermaria do Hospital Universitário. Sua locomoção depende da boa vontade de alguém que caminhe a seu lado, carregando os aparelhos que o mantém vivo. Foi assim que dirigiu, ensaiou e atuou .
Pedro acabou de fazer o segundo filme. O primeiro, intitulado por ele “Pedro no CTI”, foi muito mal recebido pelo público, seus parentes e médicos, que não entendiam porque o menino queria contar em um filme seu cotidiano no hospital, em vez de valer-se da ficção. Ele respondeu, imediatamente:me deixem contar minha história.

Territórios sensíveis....Publicado em 17/07/15

Há experiências que determinam caminhos, tão intensamente e de modo tão devastador que é impossível continuar sendo os mesmos após termos passado por elas... Nesse viés encontram-se definitivamente as práticas com as emoções e a arte...Na minha vida, através de muitos percursos, minha escolha sempre recaiu no cinema, como narrativa do mundo e de mim mesma.Até então eu acreditava compreender um pouco a natureza humana e que a comunicação responderia a todas as minhas perguntas, quaisquer que fossem elas.O que eu não sabia é que minha visão do ato de comunicar encontrava-se embaçada por formatos prévios, teorias diversas e alguma experiência prática, que me levavam a crer no poder transformador da comunicação, mas definitivamente não me prepararam para sua importância em situações extremas.Nada me preparara para ver e sentir de modo intenso a necessidade do afeto em um ambiente em que a dor e a morte podem estar escondidos em cada esquina.Nenhuma teoria poderia servir para explicar o que significa um sorriso de compreensão mútua em um lugar onde a própria presença do outro, ante um corpo fragilizado, pode parecer invasiva...Em uma realidade cercada pela busca incessante pela conservação da vida e onde pessoas e tecnologias se revezam numa guerra sem fim para ganhar mais um dia para as pessoas que ali estão, qual a importância da percepção, do sensível,da estética em face de tantas provações?Antes de cruzar o limiar da realidade palpável das doenças graves, lentas e dolorosas, eu acreditara que o lugar da arte frente à medicina era mínimo. Hoje, ainda que continue respeitando e valorizando a fundamental e muitas vezes inglória luta dos profissionais de saúde, consigo reconhecer que existe um lugar pra o “entre”, o relacional nesse campo de batalha onde se encontram todas as demais pessoas que também dedicam a vida a minorar o sofrimento alheio. E é nesse lugar que se encontra,entre outras coisas, a arte, não como criação e fruição estética, mas como um caminho, entre tantos possíveis, até o outro... Mais do que isso, como uma ação, pautada no afeto e no sensível, que se faz comum, posto que, através da arte eu consigo me reconhecer naquele que está em um leito de hospital. E é nesse lugar onde a comunicação se torna o elo possível de identificação que aproxima os sujeitos, para além da enfermidade. É na projeção de um filme ante rostos infantis, na atividade lúdica, no sorriso da educadora, que reside não somente o estar junto, mas o “ser junto”. Existência compartilhada que se estende para além dos pequenos pacientes envolvidos entre fios, tubos e químicas, indo até enfermeiros, médicos e demais profissionais e para os pais das crianças, devastados por uma enfermidade tão agressiva quanto seu tratamento... Em instantes, alguns pares de olhos se voltam para a narrativa da história projetada em uma cortina, tornando-se parte do filme... Por alguns momentos, na exibição do filme, cria-se um território distinto da dor, dos medicamentos, que parece romper os muros do hospital e levar pais e filhos a outro possível... Mais do que isso.No ato de propor uma experiência, há o dialogo , o contato com o outro, a mão que se estende, não para fazer de conta que a doença não existe mas, ao contrário, para propor que apesar da doença, todos nós continuamos existindo...Mais do que compreender o outro, trata-se de acolhe-lo.No curto espaço da enfermaria cria-se um lócus da afetividade, um território feito de sensível e de comum,onde as experimentações se cruzam, e os imaginários se comunicam no espaço dos leitos.....O cinema, nesse caso torna-se então o espaço entre, a ressignificação do lugar entre todos que dividem aquela experiência .Na medida em que se partilha o sensível, a comunicação é a trama que enreda a cada um, propondo nexos. Sua importância se dá na medida em que eu me reconheço não somente na dor do outro, mas no seu sonho, na sua emoção...Comunicar seria então dar um passo para minorar o sofrimento de quem enfrenta batalhas diárias, seja no combate a enfermidades como o câncer, seja sofrendo na própria pele seus efeitos devastadores...Além de “estar com”, no ato de ir até o outro e propor uma experiência sensível, há um componente fundamental de afeto que pôe em pé de igualdade educadores, pesquisadores e pacientes.Já não há mais observadores e observados, mas sujeitos inseridos em um mesmo território sensível e irremediavelmente humano.