terça-feira, 24 de abril de 2018

Eternamente cinema oua volta do pequeno cineasta


A primeira vez que o vi,meu pequeno cineasta,não tinha ideia de que seria pra sempre.Que ele entraria sem pedir licença na minha vida e me mudaria, definitivamente...Na primeira vez em que o vi,ele era apenas mais uma das crianças naquele hospital infantil, talvez o mais calado dos ocupantes da enfermaria.E eu já sabia que aquele leito não comportava o mundo dele.Era muito maior. Mas, pra conhecer um pouquinho dele eu precisava ter paciência e dar um passo de cada vez...Eu acabava de conhecer o projeto de cinema no hospital e tinha todos os medos de alguém que queria muito mergulhar,mas tinha medo de perder o pé em um universo que não era o meu, que envolvia dores,sangue e tristeza,em histórias quase nunca com finais felizes.Mas eu queria tentar e foi assim que entrei naquela enfermaria.Para não sair mais..E foram muitas semanas em que eu sorria pra ele e ele nada fazia,sem me deixar entrar.Todas as vezes eu oferecia algo.Um filme.Uma brincadeira.Um sorriso.Nada adiantava.Foi somente um dia,em que pela primeira vez eu estava só, que ele finalmente me viu ..Me olhou fundo dentro dos olhos e disse:- tia, você está cansada... E eu sorri..A partir daí ele me abriu a porta,para que eu conhecesse seu mundo..Logo ele que já sabia tanto do meu mundo,dos filmes que exibíamos,das brincadeiras que fazíamos e que ele já conhecia de cor..Eu que nada de novo podia oferecer..Só meu ouvido atento e minha vontade de brincar.E foi assim que eu comecei a ouvir suas histórias, sua paixão pelos dinossauros,sua vontade de fazer cinema.. Ee só tinha oito anos,um corpo franzino e um olhar acurado sobre linguagem filmica.Uma parte certamente fruto das muitas atividades das quais participara..A outra, inexplicável, vinha dele mesmo.Sua sensibilidade, vontade de criar e percepção extremamente desenvolvidas.As histórias simplesmente pulavam dos seus olhos para suas mãos e então,em poucos gestos,ele conseguia nos fazer ver o mundo que ele queria criar.Não foram poucas as vezes em que me surpreendi com a segurança com que nos dirigia,com que posicionava um ator,ou desenhava no papel cada cena de seus filmes..Era necessário, para que nós,os adultos, pudéssemos ajudá-lo.. Paraa ele estava sempre muito claro, o momento de gravar e a hora de cortar a ação..Mas nem sempre ele queria criar.Havia momentos em que os procedimentos do hospital o castigavam,deixando-o amuado.. Nesse momento não havia nada que o tirasse de seu lugar,nem mesmo os amados dinossauros. Em um desses dias,propus que fizéssemos um filme. Eu estava exausta, não conseguira pegar os equipamentos e era também um dia ruim para ele.Contudo,quando propus o filme, não demorou muito para que o sorriso voltasse ao seu rosto.Imediatamente distribuiu os papéis e funções entre nós..E disse que nos esperaria na semana que vem.No dia marcado,lá estavamos nós, figurino e papéis decorados.encontrei-o de olhos fixos na janela.Quando perguntei o que houve, me disse que queria fazer um filme do super homem. -por que o super homem,eu perguntei -para poder escalar esse muro e sair voando daqui,foi a resposta. Logo depois,viu a câmera e se animou, pedindo que começássemos. Tomei meu lugar na câmera ( o diretor já determinara previamente o enquadramento adequado)e esperei suas orientações..Ele posicionou os atores, coordenou a cena e ordenou: gravando! Comecava a história, inspirada no game Minecraft.Em dado momento a espada do Herói,que também era o diretor,caiu..Ele olhou para câmera muito sem graça, aparentando (coisa rara)ter exatamente a idade que tinha e solicitou que a cena fosse refeita.E assim foi feito..No final,cenas gravadas, prometi que levaria meu laptop na semana seguinte,para que editássemos o filme juntos. No dia da atividade,preparei cada detalhe. Queria que ele experimentasse exatamente como era a atividade de um montador.Já de entrada,não consegui encontrá-lo.Ele não estava lá.Percorri, bastante apreensiva,cada uma das enfermarias.Foi em vão.Quando eu começava a me desesperar,uma das enfermeiras,notando minha tristeza, me perguntou o que havia.Ao saber quem eu procurava,me contou que o menino que estava naquele leito recebera alta,sendo transferido para um hospital de Curitiba para melhorar seu tratamento... E ninguém tinha seu contato..Assim,sem despedidas,ele partia, deixando um filme por terminar... Como ele mesmo sonhara, conseguiu voar, ultrapassar os muros do hospital... Passaram quase dois anos..Nunca mais tive notícias do pequeno ocupante do leito dos fundos,da enfermaria C. hoje voltei ao hospital para falar do projeto...De repente,sou surpreendida por várias imagens dele,nas atividades de cinema que tanto amava...E então decidi que devia contar sua história... Ali, entre as memórias de um ano de convivência,me senti mais perto dele e das atividades que compartilhamos...Parecia que eu podia vê-lo,meu pequeno cineasta,sentado na cadeira de diretor preparada especialmente para ele,controlando os atores, manipulando a câmera de filmar.E o cinema, eternamente ponte, construída entre mim e ele,criando laços para além da presença,na medida do tempo que vivemos no hospital. Acabo minha fala,volto ao meu assento,me preparo para sair.Alguém me felicita pelo final feliz da história,tão diferente do real.. Nãoo compreendo.Peço explicações.Então me contam que meu amigo,após a saída do hospital,não resistiu,morrendo em seguida..Tinha nove anos, grande parte desses passados em um leito hospitalar..E foi dali que conseguiu construir sua escada,degrau a degrau,para escapar da prisão... Enquanto me afasto,uma imagem vem à mente:seu corpo frágil,em pé sobre o leito,de capa vermelha, pronto para voar..E assim,sem aviso,meu pequeno cineasta,amigo dos dinossauros,partiu em busca de outros universos para contar histórias.. Voou.ali, bem de longe,onde mal podemos ver, vejo que olhou brevemente para trás e disse simplesmente:corta!

quinta-feira, 19 de abril de 2018

Imagens frágeis

Territórios sensíveis-05/04/18-Enfermaria HU 9a37



Se a essência do cinema está no que é exibido na tela, como definir a experiência que transforma sujeitos, espaço e tempo, mas que exibe na tela imagens difíceis de serem enxergadas, como a iluminada enfermaria do HU. E se o cinema não está na tela, onde estaria? Não faltam, entretanto, os elementos fundamentais da exibição. O projetor, o filme, o espaço de exibição. Isso sem falar no público. Qual seria a diferença: é que o público, em vez de sentado em poltronas comuns, está deitado em macas, conectado a aparelhos, por vezes sedado e adormecido após procedimentos invasivos, cansado e dolorido em sua espera pela cura. Talvez justamente por isso o momento em que olham para a tela é extremamente importante. Nesse dia, demoramos a entrar na enfermaria. Há uma maca que precisa ser realocada, com uma nova paciente. Também há duas senhoras dormindo. Quando começamos a atividade, seu acompanhante pede que esperemos para que possa acordá-la, para que não se assuste com o som. Informado de que abaixaremos o áudio ao mínimo, ele se tranquiliza. Logo depois, resolve por ele mesmo acordá-la para que possa ver o filme e pede também que a maca seja realocada, para que a senhora possa ver. Pronto! Nesse gesto simples, acabou de se constituir nosso público, apesar dos aparelhos, apesar das dores e do cansaço, seu corpo ocupou seu espaço na experiência e a partir daí, fez-se uma relação espaço e tempo distinta, construída da possibilidade do cinema afetar o corpo e o corpo assim afetar o espaço e o tempo. E que afetos são esses? São feitos de sons, imagens e memórias, que nos chegam através da música do Clube da esquina, filme exibido na voz calma de Milton Nascimento, onde aprendemos que sonhos não envelhecem, estejam os corpos acamados, incapacitados, doloridos e esteja o cinema enfraquecido em sua porção técnica, imagens translúcidas, frágeis, efêmeras em um espaço em constante modificação. Mas é quando os rostos de 4 pacientes e 3 acompanhantes, mais 4 participantes da atividade se voltam para a mesma experiência em cantarolam o clube da esquina que percebo que é na fragilidade deste espaço, entre os sujeitos e o cinema, que reside nossa principal força.