sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Cinema no HU-25/11/2015-O que é que a Atlântida tem?








O filme escolhido hoje para o projeto Cinema no Hospital, nas enfermarias do Hospital Universitário, obedecia a um padrão pensado no início das atividades: mesclar memória, história do cinema e música. A ideia era unir sensibilização, entretenimento e reflexão em uma mesma atividade. Para isso, a sessão teria em cartaz Carnaval Atlântida, filme de 1952 feito pela Atlântida, produtora brasileira que funcionou entre os anos 1950 e 1960. A enfermaria escolhida foi a 9A33, com cinco pacientes mulheres e um senhor de 90 anos, que dormia profundamente. E fomos recebidos com alegria por pacientes e acompanhantes, pois todos disseram que seria ótimo verem um filme. Início da projeção, olhares na tela/parede e logo percebo que a presença do cinema começa a transformar o ambiente. Uma das pacientes se ajeita no leito,outra acorda e começa a acompanhar o filme e a uma das acompanhantes chega a se acomodar na poltrona. Contudo, ainda estamos em uma enfermaria e as peripécias de grande Otelo e Oscarito não impedem que todas as práticas técnicas ocorram, nem que o sofrimento aconteça. E é assim que, ao mesmo tempo em que rimos com o carnaval na tela, sofro com um visitante, que vai ver uma paciente e ,não aguentando, precisa ser retirado, pois cai no choro. Da mesma forma, em um canto da enfermaria, o senhor acorda e passa o restante do tempo em que estamos ali chorando de dor, algo que angustia e entristece. Enquanto isso, profissionais de saúde, atraídos pelo som, acabam sorrindo ao verem o filme na parede. Logo chega o horário de terminar o filme devido ao adiantado da hora e das visitas. Desligo o projetor e comunico ao “público” que precisamos parar e continuaremos na semana que vem. Reclamação geral. Pacientes, acompanhantes e visitantes dizem que o filme estava ótimo e até mesmo a acompanhante da senhora em estado grave pede que, se possível, a exibição continue. Uma delas me pede inclusive que me traga sua mesa, para que possa lanchar com suas companheiras. Atendida, logo se estabelece uma “sala de estar”, todas acomodadas, sorrindo e conversando, como se estivessem em casa. Me encaminho até a filha do senhor, que continua choramingando e ela, sem deixar de abraçar e acalmar o pai por nenhum minuto me olha e diz que, por favor, continue, porque estava muito bom. Diante de tal quadro nada mais me restava a fazer. Voltei ao projetor,recomecei o filme,para alegria geral. O que dizer, quando pacientes internados,alguns em estado grave e acompanhantes arrasados pelas doenças de parentes consideram importante, fundamental, que o filme continue?Assistimos juntos a desempenho de Oscarito e Grande Otelo e, ao final, pude perceber o quanto fora importante continuar a exibição. Com sua dança, música e humor, Carnaval Atlântida atravessara o cotidiano da enfermaria, não para negar ou fingir que a dor e o sofrimento não existiam, mas para transcendê-lo. No momento em que uma filha,abraçado ao pai doente, fixa seus olhos na tela, não desconhece sua dor, mas parece tornar-se mais forte. O filme assim cria um novo território, paralelo à realidade, não para transformá-la, mas ao menos tornando-a suportável.

Cinema no IPPMG- 14/11/2015-Cinema para ver, sentir e pegar

Entrar em uma enfermaria de crianças acamadas significa encontrá-las quietas,amuadas, deitadas em seu leito,correto? Tal definição não poderia estar mais errada. Na enfermaria B, onde fui hoje,pela primeira vez sozinha, o quadro era o mais distinto possível. Pra começar, brinquedos espalhados por todo o chão. Além disso, velocípedes infantis (três,para ser mais exata) dividiam espaço com enfermeiros,médicos,pacientes e acompanhantes e durante todo o tempo em que estive pela enfermaria, ouve um troca-troca de crianças, apostando corrida ao longo do espaço disponível do hospital. Nesse ambiente, propor uma atividade mais tranquila como um filme pode parecer contraditório. E é.Mas há que se acreditar no poder da imagem para convocar os olhares,mesmo aqueles tão pequenos que se sentem encantados pelo mundo a tal ponto de não conseguirem fixar-se em atividades por mais de alguns minutos. E ,mais do que isso,é preciso crer no caráter de novidade quando se abrem as caixas de equipamentos e se monta o cenário, próximo ao que alguns conhecem como cinema.E então vem a grande surpresa:a experiência do cinema que conhecemos é totalmente subvertida pelas crianças da enfermaria. Para eles, a narrativa do filme chega a ser desimportante. A magia consiste então na luz, que os encanta . Logo,assim que o filme começa, muitos vêm correndo, os olhos fixos no projetor, para experimentá-lo,compreendê-lo. E já são muitas mãos tateando o equipamento até o momento mágico em que descobrem que podem interagir com a projeção,alterando-a e até interrompendo-a quando bloqueiam a luz com as pequenas mãos.São muitos risos , no encantamento da descoberta ,pois se dão conta de que podem assim contar sua própria história. Curiosos, tocam a superfície do computador,seguem a direção dos fios e ,pronto! Descobrem as caixas de som.Enquanto peço que tomem cuidado com o ouvido,com os olhos, para que a luz não os incomode, lançam-se com o destemor da primeira infância, postando-se de olhos bem abertos na frente do projetor,como se quisessem mergulhar na luz, apreender os mecanismos de seu funcionamento. Riem muito, de fechar os olhos,quando conseguem interromper o filme e fazem sombras, apontam uns para os outros, criando novas histórias, provavelmente. O cinema, mais do que narrativa,torna-se um brinquedo tátil, manipulável, um território onde não consigo penetrar. Me posto do lado de fora,observando as apropriações, sendo às vezes convocada para que me mostrem o que descobriram de diferente. Por longos minutos esquecem-se do filme, correm para os velocípedes e recomeçam outra brincadeira. Apenas Kauã,o pequeno cineasta,se aborrece com as interrupções. Para ele o ato de ver e fazer filmes é coisa seria.Ele também se entedia com a exibição dos mesmos filmes,mas me propõe passar uma cena, a final,do seu amado filme dos dinossauros. Cedo ao pedido e algumas crianças se incomodam com a exibição nada delicada do Tiranossauro Rex na tela, mas assistem ao filme curiosas. Ao final, proponho passar Kiricoum, animação francesa que consegue afinal captar a atenção de gregos e troianos. A maioria das crianças se senta,ainda que nos velocípedes e assiste inacreditáveis 60 minutos de filme,interagindo com a história ate o final. Mérito da história,mas também das cores e músicas que enriquecem o filme. Em nenhum momento o projetor deixou de ser manipulado,assim como os demais equipamentos.Mais do que cinema para ver,fazer e refletir, hoje percebi uma materialidade na imagem e uma necessidade de compreendê-la que, no caso das crianças, é tátil, convoca todos os sentidos. Nesse experimentar eles inserem-se na experiência, fazendo-se parte da imagem, alterando-a ,tornando-a um objeto de seu vasto imaginário. E eu, que ali chegara com a ideia de oferecer uma experiência cinematográfica, percebi que acabara de testemunhar uma vivência sensível, em tudo isso que sensível quer dizer, posto que cada sentido fora convocado, gerando novas imagens e territorialidades.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Uma tarde no H.U com Caetano e Chico

Territórios sensíveis-11/11/2015-Cinema no HU. Enfermaria 9A-23




Em 1967, ao adentrar o palco do Teatro Record, Caetano Veloso foi surpreendido por uma estrondosa vaia. Não se tratava de uma represália somente ao cantor, ou sua música. A vaia era tida por muitos como instrumento de manifestação popular diante de uma ditadura militar que se configurava mais demorada do que pareceu inicialmente. Ainda assim, sorriso no rosto e os famosos caracóis ao vento, o cantor baiano prosseguiu na canção, sem deixar de sorrir por um momento sequer. Saiu do palco aclamado pela multidão, enquanto repetia “eu vou, por que não,por que não”, versos de Alegria,Alegria. Parece incrível que, em meio ao calor, às enfermidades, ao cansaço e à rotina de um grande hospital a música se sobreponha como narrativa, mesmo que por alguns momentos. Mas sim, enquanto exibíamos Uma noite em 67, documentário de Renato Terra e Ricardo Calil, a maior parte dos pacientes acordados acompanhava a evolução de Chico Buarque, Edu Lobo e Caetano Veloso, em vídeos de arquivo e entrevistas gravadas em off. Uma das pacientes, empolgada, citava fatos da vida de cada artista enquanto as acompanhantes comentavam cada apresentação. Logo aparecia na tela (a parede da enfermaria, diga-se de passagem) a imagem de um Roberto Carlos em seus 20 anos, o que levantou exclamações de todas as presentes. Mas foram os belos olhos azuis de Chico o componente que alimentou o devaneio feminino naquela enfermaria.Chico, afinal de contas ,é e sempre vai ser Chico. Poderíamos dizer que estávamos em uma sala de exibição ou sala de estar como outra qualquer, em que comentávamos umas com as outras os sucessos na telinha ou na telona. Contudo, estávamos na enfermaria do Hospital Universitário, onde a cada minuto profissionais de saúde entravam para procedimentos, pacientes entravam e saiam e até um aparelho de raio-X irrompeu no local. Em dado momento, a paciente mais grave precisou ser submetida a um procedimento delicado, sendo atendida por uma profissional que, apesar de permanecer atenta ao trabalho, permitiu-se cantar os versos de Caetano. Alheio a tudo isso, o filme continuava sua narrativa e Sérgio Ricardo quebrava seu violão em pleno palco. A cada cena, as pacientes e acompanhantes lembravam de um fato,uma historia,comentando umas com as outras.É impossível assim não lembrar de autores como Muniz Sodré que fala sobre os meios como formas vinculativas e pensar que o cinema ali naquele ambiente permite experiências compartilhadas, potencializadas pelo uso da música.Assim, um breve olhar aos rostos nos primeiros acordes das canções permite registrar o instante do reconhecimento, como se o som ativasse imediatamente uma memória,um afeto. E cada uma das presentes vira-se para a outra, perguntando: você lembra?Também eu me lembro das músicas da década de 1960, que conheci ainda muito pequena. Era esse o recurso da minha mãe para que eu conhecesse a história recente do Brasil. Em minutos passaram pela minha cabeça as tardes na sala de casa, entre discos de Gil, Caetano e Chico e as peças de escola, em que eu sempre buscava temas que envolvessem a ditadura militar. Nem nos maiores devaneios me passou pela cabeça que, em algum momento da vida, eu estaria exibindo as canções da minha infância para pacientes internados, principalmente pelo fato de que a área de saúde jamais foi uma opção de carreira para mim. Assim como “A roda viva” de Chico Buarque, “ o mundo girou” e me colocou ali em plena enfermaria do HU, vivenciando uma experiência sensível, em tudo isso que sensibilidade quer dizer, posto que, ao passo que o filme convida ao devaneio, há realidades que não podem ser ignoradas e acabam sendo incorporadas à narrativa do filme. Enquanto cantávamos Roda Viva,uma menina,que voltava de um exame desmanchava-se de chorar,ao telefone. Sua mãe, uma das mais animadas espectadoras do filme enquanto a filha estava ausente, em dois passos teve que se deparar com a dura realidade da doença da menina e seu desespero. A tudo isso é possível assistir na enfermaria e por vezes as histórias são tristes demais para que possamos suportar. Mas é preciso persistir e deixar que a música faça seu trabalho, invadindo aos poucos o ambiente, propondo novas territorialidades e tornando o cotidiano mais leve, em alguma medida. Penso que esse também é o papel da cultura e da comunicação, enquanto experiências que convocam o sensível e propõem um instante de silêncio em meio ao caos cotidiano. Uma vez que se deixa a música e a imagem entrarem, tempo e espaço se fazem subitamente outros, assim como nós.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Lições de Humanidade: 04/11/15-Enfermaria geriátrica do HU- Enfermaria-9A. 27



No filme o grande ditador, Charles Chaplin, em seu último discurso, teria dito: “Mais do que máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.” (O grande ditador, Charles Chaplin, 1940). É impossível adentrar a enfermaria do Hospital Universitário e não se lembrar dessas palavras. Principalmente quando a sua tarefa envolve a prática do cinema.Por todos os corredores do hospital, profissionais e pacientes atravessam o mesmo espaço, trocando palavras, realizando suas tarefas diárias e sendo atendidos, de acordo com a necessidade de cada um.Muitas vezes, o cotidiano parece “enevoar” cada contato, distanciando os sujeitos envolvidos nessas atividades. E então se assiste ao desfile de “desumanidades”, quando pacientes são vistos como tarefas e profissionais de saúde como detentores de técnicas, sem que um ou outro possa se dar conta do que esta acontecendo de errado. No momento em que entrei na enfermaria, um profissional auxiliava outro (provavelmente estudante) na execução de um procedimento. Enquanto a estudante realizava sua tarefa no corpo do paciente, o profissional absorvia-se em seu próprio celular. Poucas palavras são trocadas, além do necessário para que a técnica por si realize seu trabalho. È nesse ambiente onde monto o equipamento de projeção, imaginando quem iria acompanhar o filme, uma vez que dois dos pacientes dormiam e outra estava em meio a um procedimento. Restavam S. e J., que concordaram em assistir à projeção. Joselma, inclusive, desligara a TV. O filme escolhido? “Vida de Cachorro”, de Charles Chaplin. Na história, Carlitos percorre sua trajetória na companhia de um cão, encontrando uma jovem, com quem se casará ao final da narrativa. Antes, porém, enfrentará dissabores, como a fome,o cansaço e a falta de dinheiro.O pior de tudo:a falta de humanidade das pessoas com as quais o personagem convive. Como sempre acontece, quando a música toma a enfermaria, a linha tênue entre a narrativa na tela e a realidade parece se esgarçar ainda mais. Arrisco imaginar que a trilha sonora compõe com perfeição as ações da enfermaria, permeadas de drama e alguma comédia, por vezes. Assim, S. e J. seguem as aventuras de Carlitos, enquanto V. ,uma senhora que dormia quando chegamos, abriu os olhos e me parece prestar atenção em tudo que fazemos, embora a enfermeira comentasse de seu estado de “ausência”. Também ocorre ver profissionais de saúde adentrarem a enfermaria e, surpresos ante o filme que está sendo exibido, esboçarem reações curiosas. Muitos sorriem, chamam a atenção uns dos outros e por alguns minutos acompanham a projeção. Outros, como o profissional que realizava o procedimento na enfermaria, parecem alheios ao movimento. Enquanto isso no filme, Carlitos tenta conseguir um bocado de comida, para ele e seu cachorro. Olhos atentos, S. e J. concentram-se na tela e até a enfermeira que me acompanha, de bom grado continua ao meu lado, seguindo a narrativa com interesse. O filme acaba e V., a paciente “ausente”, recebe duas visitas que, espantadas com o comportamento dela, perguntam se ela nos conhece, pois fixa seus olhos em nós. Comento que ela não me parece assim tão “desligada” e me arrisco a dizer que V. acompanhara bastante do filme exibido. Por sua vez, S. e J. dizem gostar muito do filme, principalmente por tratar-se de uma história envolvendo um cachorro. Despedimo-nos e volto para casa pensando ainda nas palavras de Chaplin: ”mais do que técnica, precisamos de humanidade”. Assim, mais do que somente procedimentos técnicos, o que os paciente necessitam parecem ser mãos estendidas, ouvidos que possam ouvir e olhos que possam vê-los, entrarem em contato, compartilharem o momento. Dessa forma, começo a compreender a ideia de território sensível como mais do que um espaço material, localizado entre paredes, mais um espaço afetivo, determinado pela experiência compartilhada e pelo afeto que se troca, não só durante o filme, mas apesar do filme que é exibido. Territorializar seria então uma forma de coabitar o outro, tocar o sensível, trazer suas memórias e afetos à borda, compartilhar um tempo comum. E se o cinema pode constituir este espaço, ele o fará não somente por tratar-se de uma experiência sonora e visual, mas efetivamente sensível, posto que permita o contato com o outro, enxergá-lo na mesma medida em que enxergamos a nós mesmos, dividindo a mesma vivência, seja com as agruras de Carlitos, seja com as relações cotidianas na enfermaria. Logo, realidade e ficção, ao entrarem em contato, diluem-se em alguma medida, possibilitando não somente a fruição estética, ou a “distração”, tão necessária a pacientes e profissionais de saúde, mas o exercício de reflexão no qual o olhar sensível traça uma comunicação entre mim e o outro. A comunicação se faz quando os pacientes comentam o filme, agradecem, falam de suas partes preferidas mas, principalmente, quando vejo que seus olhos foram captados pela história e conseguiram levá-los além de sua condição hospitalizada.Ao término do filme, quando sorriem, sem que seja necessário uma palavra além, encontramo-nos,eu e eles, irremediavelmente modificados.