quinta-feira, 30 de março de 2017

Musicalidades no hospital

Cinema no HU-300317-Enfermaria 1.10 andar.6 pacientes.3 acompanhantes. Mulheres “Mas você vai vender alguma coisa? ” -Me pergunta a paciente, olhos pregados na tela. Recebendo uma negativa, sorri e me faz nova pergunta: - É de graça? Sorrio. Que lindo- ela diz. Na verdade, não é de graça. Cada ida ao hospital me custa ser outra, enquanto pesquisadora e ser humano. Em uma cidade em chamas, como bem colocou Anderson França, cada semana tem seu preço, em tempo, stress e cansaço. Ao mesmo tempo, e torno maior, quando ultrapasso os obstáculos, um após o outro. Para começar, a resistência a oferecer o cinema para quem está em uma situação de fragilidade e dor. Hoje, depois de enfrentar um meigo engarrafamento, viatura incendiada, carros de polícia, etc. (nada além do normal no cotidiano carioca, infelizmente), me deparo com uma enfermaria feminina, onde duas pacientes (por volta de 40 anos), estavam bastante fragilizadas. Uma delas, nauseada, levantava a cada momento. O que fazer, além de oferecer o que elas não tinham, ou seja, o cinema, em áudio e imagem? Dessa vez, mais áudio do que imagem. O filme escolhido, Cartola, cria uma ambiência musical que vai, aos poucos, sendo incorporada à enfermaria. Diante das primeiras notas de Moinho, composição do artista mangueirense , como oferecer resistência? Ainda que a contragosto, as pacientes se acomodam nas macas, viram o rosto para a projeção que, diga-se de passagem, está bem deteriorada, devido à claridade da enfermaria. Mas, diante da música, a imagem se torna supérflua, desnecessária. Ao passo que o filme se desenrola, algumas falas de entrevistados denotam a relação de Cartola com religiões afro, gerando uma ruga de desagrado em duas acompanhantes. O que não as impede de virar o pescoço em direção ao filme, a cada vez que uma música é iniciada. Um da paciente mais próxima de mima mesma que, ao final da exibição, me perguntara se era de graça, acompanhara cada cena do filme com bastante interesse. Ao final da exibição, quando suas visitas chegam, ela ainda comenta que vira um filme de Cartola e que gostara muito. Em geral quem chega, se surpreende e sorri com o cinema projetado na parede. Exceção somente hoje, quando uma das enfermeiras me pediu para baixar o som. De modo geral, funcionários e acompanhantes se surpreendem, alguns perguntando se era som de televisão ou se havia rádio ligado. Até enxergarem o projetor. Mas hoje, com a proposição de Cartola, o protagonista do dia foi definitivamente a caixa de som. Nos intervalos da dor e da espera, as musicalidades foram sendo tecidas, de pacientes e funcionários, filme e realidade. E eu, que sempre me preocupara com a qualidade da imagem, acabara de confirmar uma outra territorialidade possível, do cinema no hospital.