terça-feira, 20 de setembro de 2016

“Mas é cinema mesmo? Daqueles de verdade?”

Cinema no HU.20/09/16.Enfermaria 9B13





Assim começa a sessão de cinema do HU. Dessa vez a proposta foi apresentada pela equipe de assistência social do HU, que pensou trazer diversão aos pacientes. O que eles talvez não soubessem é que a experiência do cinema foi muito além de distração e entretenimento. Por ser um projeto específico do serviço social, a sessão contou com a organização da “sala”, feita com o deslocamento dos pacientes para que pudessem ficar mais próximos da tela. Também tivemos a sorte de um dia mais escuro, o que torna a (quase sempre iluminada) enfermaria do HU uma sala de projeção mais de acordo com o convencional. A partir do momento em que os pacientes foram deslocados, em seus rostos já transparecia a expectativa pelo que se ia passar. Inicialmente seriam exibidos dois curta-metragem de animação mas, como um deles apresentou problemas de áudio, optei por exibir o sempre maravilhoso Tarja Branca que, para quem ainda não conhece, trata da importância da brincadeira na vida cotidiana, seja ela de adultos ou crianças. Como mágica, nos primeiros acordes da trilha sonora os quatro pacientes da enfermaria masculina e suas duas acompanhantes (mais os profissionais de saúde) entraram no clima do filme, prestando muita atenção ao que era dito na tela. A cada fala ou inserção sonora, ouvidos e olhos atentos (de pacientes e profissionais) iam pouco a pouco se comovendo com a proposta do documentário, que era a mais simples e, portanto, genial :convidar a uma viagem pelo território sagrado da infância, convocando nossas memórias de brincadeiras, sensações e sonhos. Assim na tela como na enfermaria uma vez que concordemos em mergulhar nas crianças que fomos, sobra espaço para a emoção e as histórias, como que por encantamento, vão surgindo uma após a outra. No fim do filme, como sempre faço, pergunto aos pacientes se preferiram a animação ou o documentário. O documentário, é voz geral. Um e outro vão lembrando das brincadeiras de infância, dos jogos que não fazem mais (por cansaço, idade ou impossibilidade física). Um dos pacientes, que não tem uma das pernas, lembra das festas juninas de antigamente, quando era o último a sair da rua, aplaudido pelos amigos. Hoje a memória de quem o viu dançar doi, prefere não ir à festa, nem tomar conhecimento. Enquanto falo que ele ainda pode ir à festa, ele lembra que hoje em dia a insegurança das ruas impossibilita a todos participar de festas como antes. Lembro que ele ainda tem as memórias, que são suas e que pode visitá-las sempre que quiser. Ele sorri, me olha e concorda: é verdade! Tenho sim! Ao final, como sempre acontece, saímos do encontro com nossas almas sempre mais leves, um tanto quanto melancólicos mas, indiscutivelmente mais sensíveis e com um breve sorriso no rosto. O papel do cinema nesse caso é abrir as portas às nossas lembranças mais profundas, territorializar nossa infância em imagens, sons e cheiros e então, quando nos damos conta, voltamos a ser as crianças de antes, reconhecendo-as no fundo de nossos olhos. Epílogo:Quando falamos do projeto e sua periodicidade(semanal), um dos pacientes,sorriso no rosto, disse: -"não pode ser todo dia,não?"

sábado, 17 de setembro de 2016

Meu bem, não chore! Hoje tem filme de Carlitos! Enfermaria C-IPPMG-16/09/16

Na volta das férias, me deparo com uma enfermaria cheia de crianças, todos meninos entre 3 a 8 anos. Proponho a exibição, como sempre fazemos e recebo em troca gritos de “oba, cinema”, “cinema, Cinema, hoje é dia de cinema”,que me deixam muito feliz. Enquanto apresento o cardápio dos filmes a serem exibidos, percebo um menino,dos seus três anos, se aproximar: -Tia, passa meu filme? Pergunto qual é o filme. Ele diz,orgulhoso:Patati-Patatá! Por regra, não exibimos filmes conhecidos, pois o objetivo do projeto é apresentar narrativas e estéticas desconhecidas que, justamente por isso, convidem as crianças a novas experiências com os filmes. Contudo, é preciso negociar e combino com meu mais novo amigo, Marcelo, que sim, passarei um pequeno trecho do filme. Assim, ganho mais um espectador para a exibição, mesmo que sua assistência seja a bordo de um velocípede, com o qual anda por entre as camas, aparelhos e enfermeiras. Logo tenho quatro meninos assistindo ao filme, sentados nas camas, mais Marcelo, que pedala ali por perto e Tiago, que, em vez de assistir à projeção na cortina, prefere se sentar no chão e assistir sozinho, bem perto do computador. O sucesso foi tanto que conseguiu mobilizar até um menino de outra enfermaria, que veio caminhando devagar, bastante debilitado. Enquanto os profissionais de saúde se revezavam no atendimento, tentando não atrapalhar a projeção, a equipe de limpeza aguardava para lavar a enfermaria, um dos meninos era retirado de maca para um exame e o pessoal da logística trazia duas enormes cadeiras de acompanhante, os filmes prosseguiam. Nada além do caos normal.Em cartaz “Caçada ao Saci, “A sombra de Sofia” e “Três Avós”. Estamos no terceiro filme e, enquanto garanto a Marcelo que seu filme será exibido, me dou conta de que um dos meninos, justamente o que estava do outro lado da enfermaria, não veio assistir o filme. Pergunto porque.A mãe me explica que ele está com a imunidade baixa e não pode se aproximar muito das outras crianças. Imediatamente levo o cardápio para ele e me comprometo a levar o projetor para lá, mesmo que isso inclua uma delicada cirurgia no blackout da enfermaria para juntar as partes rasgadas e construir uma tela minimamente decente. Assim foi feito. Filmes exibidos, coloco o DVD de Marcelo e instantaneamente ele começa a dançar e cantar. Vê-lo me faz acreditar ainda mais na potência da relação afetiva com os filmes e como a experiência com a imagem em movimento convoca nossos corpos e sentimentos. Para ele (e para muitos) a imagem deve ser algo conhecido e trazer familiaridade, conforto, remetendo a emoções já vivenciadas antes. Ocorre que o cinema precisa também causar o desconforto,dialogando com o inesperado. E para isso estamos lá. Assim, enquanto fazia o menino aguardar pelo seu filme, de uma forma ou de outra consegui fazê-lo assistir três filmes desconhecidos, imagens que vão se gravar de alguma forma em sua imaginação, germinando novas sementes de olhares e afetos.. Levo então o projetor para o outro lado. Vejo no gesto,no rosto do menino,a alegria de estar incluído na experiência do cinema..Vemos o filme do Saci.Comento sobre Monteiro Lobato e quanto da figura do Saci devemos ao escritor. Imediatamente se estabelece um debate, entre crianças e adultos, sobre nossos personagens preferidos. de repente estamos sentados,lado a lado,em plena sala estar de dona benta, junto a seus netos,ouvindo as malcriações da Emilia e as filosofias do visconde...e a tela do cinema, recém desligada, expandiu-se na memória e nos afetos de todos nós,fazendo-se então coletiva.