quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Cinema para ver e fazer-Cinema no Hu-21022017-Enfermaria 10b02

No retorno ao HU, a ideia era propor algo novo, que fosse além da já conhecida experimentação com cine-debates sobre e com os filmes. Para isso, pensei no exercício com os Minutos Lumière, propondo que os pacientes façam filmes de até 1 minuto, com câmera fixa, registrando um pouco do universo que os cerca. Até então apenas as crianças pareciam demonstrar interesse com a filmagem, mesmo porque o formato do projeto no HU pedia algo mais leve, menos invasivo e que solicitasse menos a intervenção dos pacientes.É uma dúvida de todos os dias, qual o limite entre o cinema para distração e o cinema como proposta interventiva, que demanda algo mais dos pacientes além da fuga à realidade. Por isso, levar uma câmera para o ambiente da enfermaria era algo novo e arriscado. Mesmo assim, decidi tentar. Carregada com tripé, câmera e o material de costume, entrei na enfermaria onde sabia estarem os pacientes já conhecidos da semana passada, para poder trabalhar. A ideia de escolher os já conhecidos se deu pois pude perceber o interesse destes com o cinema, seja na atenção com que assistiam ao filme, seja na forma como me trataram. Logo de início me apresentei, falei sobre o CINEAD e expliquei que a proposta era levar um pouco de cinema para eles. Cinema para ver e fazer, reforcei. Uma das senhoras, acompanhante do marido, me pareceu um pouco reticente, então perguntei se ela concordava com a atividade e reforcei que ela poderia me comunicar caso o som ou mesmo o filme estivesse incomodando o marido. Ela concordou e comecei a montar meu equipamento, informando que deixaria a câmera montada junto ao tripé. Qualquer um que quisesse fazer seu filme poderia me chamar, mesmo antes do final do filme que seria exibido, no caso A invenção de Hugo Cabret. A ideia era projetar um filme mais palatável, que dialogasse com a história do cinema, mantendo-os conectados ao ambiente de projeção. Assim foi feito. Na primeira meia hora de filme ninguém se pronunciou. Apenas prestaram atenção, com as habituais atividades de levantarem-se às vezes, mexerem no celular e conversarem entre si. Percebo que a surpresa de quem chega e vê a projeção é uma constante. Não há vez em que os que chegam não ergam a cabeça para a parede e perguntem - O que é isso? Tal questionamento reforça a ideia de ocupação de um espaço que não é o do cinema. Arrisco dizer que nem mesmo os corpos estão em seu lugar de origem, pois o desconforto, a inadequação e o incômodo são elementos bastante percebidos também, como parece ser o ambiente hospitalar. Entre os que estranham, há os que pedem para assistir também e há os que notadamente se incomodam. Ontem não foi diferente. Um dos profissionais de saúde, ao entrar na sala e ver o projetor, propositadamente fez questão de se colocar na frente do filme, como se mostrasse que sua tarefa é mais importante e que ele não pode ser interrompido. Por longos minutos, ele fez o possível e o impossível para bloquear a imagem, me obrigando a interromper o filme. Nesse momento, um dos pacientes internados, que estava ausente devido a uma operação, voltou, em sua maca. Informei que pararia o filme e todos concordaram, menos o recém-chegado, que disse preferir o movimento ao silêncio e me pediu para continuar. Assim foi feito. Há poucos minutos eu havia sido solicitada por um dos pacientes, para que fizesse seu filme. Perguntei qual era a ideia e ele automaticamente me informou que gostaria de passar uma mensagem para as pessoas. Como não podia se levantar, aproximei a câmera dele e disse que o fotografaria, para que ele escolhesse qual o enquadramento desejado em seu filme. Assim fiz. Ele demorou apenas alguns segundos para pensar no que dizer e, como se já tivesse o texto todo decorado, começou a falar. Falou sobre seu acidente de moto, sobre como as pessoas precisam lidar com os problemas e terminou com um sorriso. Finalizei a gravação e pedi seu e-mail para enviar o filme para ele. Logo, outro paciente se animou e ficou um tempo pensando no que dizer. Ao final da projeção, ele me chamou e eu perguntei qual as ideias para seu filme. Depois de pensar um pouco, o paciente me disse que só havia um lugar que ele gostava no hospital, que era a paisagem no final do corredor, onde podia ver a Baía da Guanabara e um pouco da Ilha do Governador. Ele me descreveu com detalhes a posição da câmera, (um over shoulder) e como queria a narração. Concordei com ele sobre a beleza da imagem e trouxe a cadeira de rodas, para que se levantasse. Infelizmente, ao tentar levantar, ele não conseguiu, sentindo muitas dores. Ficou extremamente frustrado. Pedi então que, quando ele saísse, fizesse com o próprio celular seu filme e me enviasse. Isso pareceu animá-lo. Os pacientes então pediram que seu filme fosse exibido na enfermaria, o que me fez anotar mentalmente que precisaria levar, nas próximas vezes, um cabo para exibir o filme assim que fosse filmado. A ideia da projeção dos próprios filmes reforça a perspectiva de autorrepresentação, pois afinal se o cinema é feito para distraí-los de sua condição, porque quereriam ver a si mesmos? Há um componente nesse pedido que será necessário investigar. Contudo, para um primeiro dia de filmagens, me pareceu muito produtivo. A presença da câmera realmente mudou os semblantes, captando sua atenção. E o fato de poderem opinar sobre o filme, se querem ou não filmar, pareceu fazer toda a diferença. Em vez de serem eles mesmos o objeto do filme, tornam-se sujeitos na medida em que podem contar suas histórias, da forma que preferirem. E eu, que hesitara tanto tempo em levar a câmera, temendo acentuar a invasão, o incômodo, pude perceber que, quando se estabelece um combinado, os pacientes ficam mais calmos e entendem que cabe a eles a escolha. O que parece haver de diferente nesse caso é que a prática do cinema não invade seus corpos à sua revelia, como as rotinas de saúde às quais são submetidos. Ao contrário. Podem (e por vezes dizem) não a qualquer ação minha, sem hesitar. Pude perceber também que o espaço cotidiano e o compartilhar da dor é o que os une, não sendo ainda o cinema algo muito diferente de qualquer outra atividade, no que diz respeito aos vínculos criados. O que diferencia o cinema parece ser ao grau de surpresa, de ineditismo da prática naquele ambiente, que os faz ficarem mais próximos, curiosos e temerosos em igual medida. A presença da câmera, dessa vez, não convidou à conversa sobre o filme, mas ao próprio ato de filmar. Quando contam suas histórias, igualam-se, para eles mesmos e para mim. Não me importa saber quem são, o que fazem, suas idades ou funções na sociedade. Ali, dentro do hospital, são destituídos de seu lugar na sociedade, fazem-se corpos dóceis, invadidos por agulhas e por medicações. O cinema, e parece, que os humaniza, torna-os novamente parte de um espaço, onde têm vontades e escolhas, permitindo-lhes ver e viver.