terça-feira, 11 de outubro de 2016

Cinema no HU -111016 Do cinema que se faz nos silêncios

A experiência do cinema no hospital envolve primordialmente a invisibilidade e o deslocamento. Partindo dessa premissa não é difícil supor que nem sempre tudo sai como planejado, por melhores que sejam nossas intenções. Assim foi hoje, quando eu previra exibir The Red Balloon, belíssimo filme de 1956.Além disso, pela primeira vez eu tentaria propor uma atividade diferente da dobradinha exibição + debate. Com alguns planos do filme impressos eu tentaria fazer com que os pacientes contassem suas histórias. Quis o acaso que o equipamento não estivesse disponível e me coube perambular pelos corredores em busca de soluções que, infelizmente, não vieram. Acontece que o olhar que se abre para o exercício do cinema jamais encontrará sossego novamente. Sem descanso, a cada esquina novas histórias se apresentam, combinando realidade e poesia. E foi assim que, em um dia particularmente controverso da nossa história atual (momento de aprovação de uma PEC que congela os investimentos em Saúde e Educação por 20 anos) comecei a enxergar o hospital como um grande palco inserido em uma realidade completamente adversa. Aqui e ali os personagens se sucediam, como em uma peça bretchiana, tentando exercer sua função. Em todos os cantos sobressaem os buracos, seja nas paredes, nos leitos ou nas almas (me perdoem pesar a mão no drama. O momento faz-se necessário). Para o observador mais desatento não passará desapercebido o abandono das pilastras da entrada, os resquícios de obras inacabadas, que se sucedem sem descanso pelos corredores, a enorme fila de pacientes nos ambulatórios. Circulando sem cessar os profissionais de saúde, sempre sem parar um só momento, tentando preencher com seus corpos as ausências, financeiras e afetivas. Daqui de onde olho, do desconfortável lugar de contar histórias em um ambiente onde tantas narrativas se confrontam (muitas desagradáveis), penso na cena seguinte, no próximo mês de um longo período sem investimentos em um dos maiores hospitais do país. Penso nas enfermarias, estufas no verão, geladas no inverno, onde se encolhem em seus cobertores pacientes que não podem apreciar a paisagem, posto que as janelas(concebidas para serem panorâmicas) estão cobertas de insulfilme descascado. Penso nas salas onde as macas, cadeiras e comadres se acumulam, sem substituição. Percorro os corredores onde as portas, envelhecidas, rangem e empenam. Me assusto com a rouparia, de onde um lençol pode levar semanas para sair. O que mais me assusta, contudo,não são os suprimentos, facilmente substituíveis,mas o material humano, esse único, pessoal e intransferível. O que ocorre se ele exaurir suas forças, perder seus recursos, recusar-se a continuar colaborando, ante a absoluta falência da instituição? O que restará da saúde como direito fundamental, intrinsecamente associada não somente à cura de doenças mas a garantia de bem estar(tanto individual como social?)Nos restará, indubitavelmente a morte e o esquecimento. Impossivel, nesse lugar, não me lembrar de uma palestra, ouvida recentemente. Ali, onde Walter Carvalho deveria falar sobre direção de fotografia. Em dado momento o fotógrafo dizia que o obturador da câmera permanece apenas metade do tempo aberto, capturando o mundo.Na outra metade do tempo ele permanece fechado, fazendo o filme(atualmente o sensor) voltar à posição/condição “original”. Sendo assim, Carvalho concluía, parte do cinema se faz em nossas mentes no escuro e no silêncio. Daí sua importância para pensar e transformar o mundo. Assim, em tempos tão sombrios começo a pensar o cinema como mais do que uma experiência narrativa, mas em sua potência de ocupação de espaço, como estratégia, necessária e urgente, de reExistência.