sexta-feira, 22 de julho de 2016

Cinema expandido, afetivo e de lágrimas.

Territórios sensíveis- Enfermaria C-22/07/16

Entrar em um hospital pediátrico, como podem imaginar todos aqueles que, como eu, não pertencem ao universo da saúde, é sempre muito. Torna-se fundamental carregar, bem junto de si, uma dose extra de coragem e outra igual de fé. Sendo assim, uma das primeiras lições que me deram foi de procurar não me apegar em demasia aos pacientes, sob risco de sofrer junto com eles e dessa forma, inviabilizar meu trabalho na enfermaria. Hoje, um ano depois, devo dizer que falhei miseravelmente na função. Desde a primeira entrada, na enfermaria das crianças com câncer, foi impossível não me sensibilizar com cada rosto, com seus olhos, inquietos e curiosos, ou suas mãos, empenhadas em interferir na projeção ou adivinhar alguma emoção diferente no meu rosto, tentando detectar medo ou enfado. Quase sempre consegui refrear meu instinto de sair correndo, cada vez que via uma criança chorar de dor ou ser submetida a um tratamento doloroso. Para piorar a situação, tenho uma aversão profunda (que beira o mal estar) a sangue e em alguns dias busquei na projeção um ponto fixo para tentar ignorar o que ocorria no hospital, procedimentos rotineiros para qualquer um que trabalhe lá, menos para mim, obviamente. Nesses primeiros dias, me lembro vivamente de uma menina, linda em seus 11 anos, que me olhou nos olhos e me disse,com tranquilidade: “Minha doença não tem cura”.Mantive o rosto tranquilo e continuei a conversar com ela, mas , ao chegar em casa, precisei ficar por algumas horas no mais completo silêncio, digerindo com dificuldade a profundidade do que ela me dissera. E então veio o contato com Kauã. Nem nos meus sonhos mais loucos eu sonharia conhecer no hospital uma figura tão forte e tão diferente quanto meu pequeno cineasta. Vindo já de um longo período de atividades com a equipe do CINEAD, a presença do cinema para ele já era algo rotineiro. Portanto, minha presença lá não era de modo algum diferente do que ele já vivia rotineiramente. A transformação, violenta e profunda, ocorreu em mim.Apesar de conviver com crianças da idade dele, eu nunca conhecera uma com uma capacidade imaginativa tão grande e um universo tão expandido, principalmente dadas as condições em que ele passava seus dias. Em pouco mais de 2 metros quadrados, todas as paredes do seu leito eram cobertas de desenhos, bonecos de dinossauros (seus preferidos) e, mais recentemente, figuras do jogo Minecraft. Naquele pequeno espaço ele jogava, desenhava, assistia a filmes, lutava contra monstros, atravessava pântanos e fugia de dinossauros. Foi ali que comecei a acompanhar suas aventuras e me surpreendi com a sua capacidade de contar histórias. Nada parecia ser novo para ele, que conseguia compreender todos os elementos do cinema (roteiro, direção, elenco, arte, cortes) quase sem que precisássemos explicar. E não de qualquer tipo de cinema, mas dos grandiosos,espetaculares, em que seu filme era exibido para multidões e a história tinha milhares de efeitos visuais. Não era necessário, contudo, muita coisa para que ele criasse suas histórias. Precisávamos apenas dar-lhe a deixa e ele se erguia de um salto, criando universos pela ponta dos seus dedos, nos explicando detalhadamente como seria cada coisa. E voava, ultrapassando as barreiras de sua condição física. A única coisa que conseguia interromper seu voo era ser obrigado a passar por algum procedimento invasivo. Ali, o mesmo sujeito expansivo, cheio de ideias, sorridente,voltava a seu tamanho normal e sua imaginação infinita retornava ao seu corpo franzino. Em muitas vezes assisti a esses processos, em que o menino se encolhia em seu leito e nada o fazia sair de lá. Nesse momento, respeitávamos seu silêncio e recolhíamos o material. Nas últimas semanas tive a sorte de encontrar-lhe no ápice de sua energia, quando aceitou fazermos mais um filme dele, com direito a elenco e figurino. Foi incrível vê-lo atuar, dirigir, roteirizar, marcar o elenco e pensar em efeitos visuais, “tudoaomesmotempoagora”. Desse dia, a imagem que ficou gravada na memória foi dele, em pé na cama, olhando para a janela e me dizendo que queria filmar uma história do homem aranha, para poder escalar os muros do hospital. Imediatamente me peguei rezando para que ele criasse super poderes e voasse imediatamente dali. Vídeo gravado chego hoje no hospital, laptop em punho, para editar o filme com ele. Já o imaginava sentado ao meu lado determinando cada detalhe do filme e opinando em cada coisa, como era bem o seu jeito. Passei pela enfermaria, não reconheci o leito, caminhei por todas as salas, até ter coragem de entrar na dele e perguntar: onde está o Kauã?O breve intervalo entre pergunta e resposta foram para mim extremamente dolorosos. E então recebo a maravilhosa notícia de que ele fora transferido para um hospital em outro estado, para tentar um transplante de medula. Enquanto eu tentava absorver essa novidade inacreditável, imagens da última gravação passavam pela minha cabeça,junto com a lembrança de seu desejo de voar. Nessa hora,em que eu tentava inutilmente lidar com as lágrimas, percebi o quanto eu fora afetada pela convivência com Kauã, por suas intervenções e observações essenciais,suas histórias maravilhosas e seu desejo de ir além dos muros, no espaço físico do hospital.Pude então entender, na carne, a ideia de experiência sensível, que não afasta campo e pesquisador.Em cada momento da minha vida eu levava a experiência com Kauã,fazendo-me crer na importância do cinema e na necessidade de sua expansão, muito mais do que apenas um dispositivo técnico, mas essencialmente afetivo. Para poder compreender isso, foi necessário mergulhar, sofrer e me sensibilizar com o cotidiano das crianças no hospital e me apaixonar profundamente pela pessoa incrível que me mostrou infinitas maneiras de expandir o cinema (e a mim mesma), para múltiplas mídias e diversas linguagens e formas. Foi necessário principalmente me posicionar como pessoa, muito mais do que como pesquisadora, deixando que o corpus me escolhesse, em vez do contrário. Nesse percurso, hipótese, métodos, recorte, tudo foi varrido pela profusão de lágrimas que me toma nesse momento. Ante o devastador efeito do afeto, não há teoria que dê conta da vida.

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