terça-feira, 21 de junho de 2016

Em busca da Terra do Nunca

Territórios Sensiveis- Cinema no Enfermaria 9 A 33 24/05/16



A ação de exibir um filme em uma enfermaria envolve, entre outras coisas, um exercício de sensibilidade. Mais do que isso,envolve compreender o tempo das pessoas e perceber que muitas vezes, o cinema será uma experiência agressiva e invasiva, tanto quanto podem ser as práticas médicas. Por isso, há sempre a preocupação, na escolha dos filmes, de conseguir contar uma história (através das imagens) que possa sensibilizar os olhares em um ambiente em constante modificação. Nada disso é novidade. A questão peculiar, no dia de hoje, é que uma das senhoras está sentada na cama e, apesar de muito próxima à “tela”, passa a maior parte do tempo de cabeça baixa, como se evitasse olhar para o filme. O filme escolhido para o dia chuvoso e o friozinho que invadem o HU é Em busca da Terra do Nunca. A ideia era, assim como no filme, criar um diálogo entre o ficcional e a realidade, tensionando-os e propondo um exercício de imersão no universo fantástico de J.M. Barrie, autor do maravilhoso Peter Pan. Ocorre que (sempre é preciso lembrar) que estamos em uma enfermaria. Logo, as possibilidades emissivas são,infelizmente.muito reduzidas. No dia em questão, há muito pouco silêncio, na verdade e mesmo o encantamento e o pó de pirlimpimpim de Sininho não são suficientes para fazer a magia acontecer. Por alguns momentos me parece que a descrença de Michael, o sensível e reativo filho de Sylvia e inspiração do Sr Barrie para compor Peter Pan, tomou a todos da enfermaria e não é para menos. Há pacientes graves, senhoras que dormem quase o tempo todo e uma das pacientes, já citada anteriormente, mesmo sentada de frente para a projeção,insiste em não olhar para o filme. A história se desenrola na “tela” e seguimos sem grandes evoluções. Até a cena em que Barrie leva a peça de Peter Pan para a casa de Sylvia, pois a mesma, em estágio terminal de câncer, não consegue mais se levantar da cama. Enquanto personagens fantásticos e música invadem o cenário, do lado de cá a mesma senhora que passara a última hora de cabeça baixa, ergue o rosto e, finalmente, contempla a tela. Consigo adivinhar em sua expressão, o conflito entre o desânimo e a surpresa, enquanto segue atenta o desenrolar da história. Percebo então que alguns outros rostos se modificam, ante o cenário lúdico que se apresenta.Por alguns momentos Neverland se torna mais próxima de nós. Sigo a transformação do ambiente e, de repente me lembro do final do filme. Logo após caminhar em direção a Neverland, Sylvia morre. Achei por bem que, no cenário de exibição do filme onde estávamos, tal cena seria desnecessária e cortei o filme nesse momento. Usei aqui do argumento de Eisenstein (e tantos outros) sobre o sentido do filme estar na montagem, nos cortes que se faz. Qual seria a lógica então de, em uma enfermaria geriátrica, em que se negocia arduamente com o tempo todos os dias, trazer a representação da inevitabilidade da vida, após finalmente conseguirmos entrar em contato com a fantasia?Melhor seria (como foi de fato) caminhar em direção a Neverland e não voltar os olhos para trás, tentando perceber, no cinza do cotidiano, elementos para que possamos, em alguma medida, tentar voar. A imagem da Terra de Peter Pan perdura nas fantasias que nós, adultos, teimamos em deixar para trás, crendo que é na garantia da seriedade e frieza que está o componente que nos fará bem sucedidos e felizes. E enquanto estamos ali, tentando parecer fortes o menino que habita em nós segue em silêncio, tentando subir na beirada da cama para arriscar um voo. Se o deixarmos livre, ele se esticará a tempo de receber a dose diária de pó de pirlimpimpim e conseguirá sobrevoar o quarto até, quem sabe, sair pela janela. Muitas vezes, ao menor sinal de barulho ou crítica, surpreendemo-nos sobre a beirada da cama e pensamos:o que diabos estamos fazendo aqui? E voltamos para o conforto do chão. E enquanto isso, ali perto, a janela permanecerá a vida toda aberta, esperando um momento de distração.

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