quinta-feira, 21 de abril de 2016

Territórios Sensíveis- Cinema no HU-Enfermaria 9A – 33 12/04

Quando Michel Foucault falava sobre resistências e sujeições, decididamente seu olhar recaia sobre as relações entre sujeitos, atravessados por “estruturas” sociais. Não é por acaso que muitas obras foucaultianas foram permeadas do objeto hospital e suas particularidades cientificas e sociológicas. Dessa forma, pensar em laços de afeto em um ambiente hospitalar em constante modificação, cercado por rígidas rotinas e procedimentos invasivos e por corpos adoecidos é pensar definitivamente em um ato de resistência. E foi exatamente nas brechas da pesada rotina hospitalar de uma enfermaria geriátrica,que conheci Seu Moacir e Seu Augusto, dois simpáticos senhores de seus 70 anos. Assim que cheguei, logo ficou fácil perceber que Moacir era o porta-voz da enfermaria. Era ele quem se movimentava com facilidade,conversando e chamando atenção de todos que passavam. Foi ele que me perguntou sobre qual seria o filme que veríamos e pediu que passassem Os Mercenários, enquanto Seu Augusto aguardava, em silencio. O filme escolhido era A musica segundo Tom Jobim, documentário musical de 2012.Durante grande parte do filme os dois senhores conversaram sobre as exibições, as músicas,os intérpretes, sempre com grande intimidade e bom humor. Logo, Seu Moacir não aguentou e sentou-se ao meu lado.Começou a falar que adorava filmes western e se eu tinha percebido que o som estava reverberando nas paredes do hospital.Quando perguntei como ele sabia dessas coisas,me respondeu que fora técnico de som por muito tempo e me pediu que trouxesse um filme de ação.Prometi que procuraria Bonanza(Série de tv western da década de 1960-70),conforme ele pedira e traria outros filmes também.Durante todo o tempo da conversa, Seu Augusto,deitado, acompanhava o filme e cantarolava as músicas que eram executadas. A um canto da enfermaria, uma senhora cuidava do marido, depois de me dizer que não podia, infelizmente, acompanhar o filme, pois o companheiro estava muito debilitado. Enquanto isso,profissionais de saúde se revezavam na sala, sempre observando com espanto e alguma alegria a exibição do filme. Parece incrível que, em menos de um mês de internados, os dois senhores já estejam tão próximos, conversando como velhos amigos, mas é preciso compreender em que medida os dois estão em uma situação limite. Afinal, uma coisa é trabalhar ou mesmo visitar um hospital. Outra, bem diferente, é estar preso às suas rotinas por ocasião de uma enfermidade. Na ausência do cotidiano,estabelecem-se novas demandas,atendidas pelas circunstâncias mais adversas e imprevistas.À parte todas as regras, nunca se sabe quando haverá uma emergência a seu lado ou a necessidade de exame ou deslocamento.No descontrole dos corpos, a busca de afeto parece se a única saída para não se perder o rumo.E assim,caminhando um ao lado do outro,Seu Moacir e Seu Augusto resistem,bravamente,com ou apesar do cinema.Por outro lado, trazer filme para o hospital sempre é um exercício de negociação de espaços e de debates .A cada dia é necessário negociar os filmes,o tempo de exibição, a forma como serão exibidos e para quem.Em todos os dias,os pacientes conectam-se ao filme em intervalos irregulares, levantam-se,mexem no celular, atendem suas visitas. Por vezes, apenas eu assisto ao filme. Contudo,tenho aprendido que o mais importante não é o tempo que permanecem conectados à narrativa mas o quanto se apropriam dela para conectarem-se a si mesmos e aos outros.



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