sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Territórios sensíveis- Enfermaria C-09/10/2015

http://territoriossensiveis.blogspot.com.br/2015/10/territorios-sensiveis-enfermaria-c.html “-Minha doença não tem cura”, me disse D. ,10 anos,me olhando profundamente nos olhos, enquanto manipulava o taumatrópio. “-É por isso que venho para o hospital”. Surpresa, sem palavras, respirei fundo e disse, também olhando-a nos olhos: “- Sim, mas isso não te impede de ser feliz”. Ela apenas me olhou e concordou com a cabeça. Em seguida continuou girando o brinquedo. Ainda agora, horas depois de ouvi-la, sua frase continua ecoando em meus ouvidos. O que fazer qual palavra, qual gesto poderia confortá-la?Me senti impotente, sem forças, com vontade de carregá-la no colo ou de sair correndo. Havia sido uma longa tarde, de alguns sustos e bastante tristeza. Afinal, já entramos na enfermaria com o murmurar de vozes que falavam sobre a morte de uma menina. Na mesma hora,um desespero me invadiu, tentando repassar todos os rostinhos já conhecidos, temendo pela confirmação da identidade do óbito e já arrasada pela simples ocorrência de uma morte. Crianças mais do que ninguém, não devem morrer. Sua existência deve ser permeada de experiências entre as quais não devem estar de jeito nenhum a doença e a morte. Entretanto,as enfermarias do Hospital Universitário recebem todos os dias famílias, pelos mais variados motivos.Entre elas,Rebeca,Pâmela,J., Nina e a bela D.. Ainda na semana passada D nos contara uma história sobre uma menina que, ao entrar no hospital,logo logo saia e voltava para casa.Infelizmente,essa semana ela ainda estava lá.Com ela,várias outras, em diferentes estados de saúde e ânimo. Enquanto organizávamos o material, a mãe de uma das crianças questionava um profissional de saúde sobre algo referente a filha. . “Tomorrow”, foi a resposta do profissional. .”Não falo inglês”, retrucou a moça, contrariada.Esse breve diálogo parece uma metáfora das relações no hospital.Para entrar em contato é preciso dominar um código comum,falar a mesma língua.Nesse viés a comunicação parece ser um componente fundamental para que sejam construídas pontes entre os sujeitos .É nesse lugar em que o cinema pode verdadeiramente ser útil,posto que propõe ligações sensíveis entre quem se aproxima dele ou através dele,mesmo que por vezes a realidade atropele tal relação. Assim foi durante a exibição do filme Leonel Pé de Vento. Enquanto R.e K. assistiam ao filme, J., que fazia diálise, gemia de dor,enquanto a mãe a acalmava. Seu pequeno corpo se contorcia e ela parecia a cada momento mais frágil.Entre os fios que a conectavam à máquina de diálise,o sangue (que, segundo a equipe responsável, já devia ter parado de sair), seguia tingindo de vermelho os tubos. Foi então que seus olhos encontraram a tela e não se despregaram de lá por um bom tempo.E logo juntou-se às crianças D.,trazendo consigo o equipamento no qual estava conectada. Sonolenta,tristonha, caminhando devagar,mas, graças a Deus,viva.A menina veio lentamente sentar-se para assistir o filme.Ao final de Leonel, bem no inicio de Josué e o pé de macaxeira,escolha de D.,fomos interrompidas pela equipe médica para realizar uma punção.D. ficou muito triste e só se animou um pouco ao dizermos que interromperíamos o filme para que ela pudesse ver quando voltasse.Durante todo esse tempo, J. não parava de gemer. E então a notícia que ainda mais nos entristeceu: Se aproximando de nós,uma das enfermeiras pediu que colocássemos legenda no filme.É que há duas semanas, a doença de J. afetara sua audição.Enquanto a responsável pelo CINEAD pensava em um filme com legendas, um grito nos assustou:pensamos ser D., mas era um dos meninos do outro lado da enfermaria, que passava por uma transfusão. A coragem da pesquisadora do CINEAD é inspiradora pois,apesar de todas as más notícias recebidas, ainda conseguiu propor brincadeiras óticas , no que foi acompanhada pelas crianças. Até mesmo D., ainda que triste, tomou parte na construção de taumatrópios e dobradinhas. Enquanto ajudava, pensei que, por vezes, o trabalho parece não fazer nenhuma diferença.Em alguns momentos,de fato, ninguém parece prestar atenção ao filme. Mas basta que só um rosto focalize o filme por alguns momentos para que tudo pareça fazer sentido. Ao ver suas expressões se modificarem ao acompanhar o filme, tenho certeza da importância de cada etapa do trabalho.Não que as intervenções possam ser interrompidas. Não são.No exato momento em que J. consegue fechar os olhos, um enfermeiro chega para lhe aplicar uma injeção. Felizmente,o procedimento foi rápido e ,até onde pude perceber,bem sucedido.Enquanto isso,Rebeca recorta taumatrópios e conta sobre os desenhos que pregou na parede. Atordoada com a conversa com D. não percebo a importância do gesto. É preciso que a pesquisadora do CINEAD me alerte sobre como é importante a apropriação do espaço pela menina. É dela também o desenho que enfeita a parede próxima a J. Mais do que simplesmente um desenho,é sua identidade que Rebeca coloca ali. Assim como os taumatrópios, quando movimentados, unem figuras diferentes em uma só,também Rebeca, ao colocar seus desenhos favoritos nas paredes, torna seu cotidiano no hospital,parte de sua vida. E enquanto as deixamos recortando e colando os brinquedos óticos, percebo que em vez de buscar nos pressupostos teóricos alguma explicação para a quantidade de experiências vividas hoje,me pego rezando para que finalmente a heroína da história de D. possa enfim voltar para casa.

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