sábado, 24 de outubro de 2015

Territórios sensíveis- 20/10-HU- enfermaria 9-27 Quando a música convoca o olhar

Adentrar um grande hospital não é tarefa fácil para os “não iniciados”. A saber, aqueles que não são profissionais de saúde. A começar, tem as grandes filas para os ambulatórios e a expressão de cansaço e tristeza que cerca cada paciente dali. Depois, os corredores frios, onde os jalecos brancos revezam-e sem cessar e eu me perco, tentando encontrar a porta certa. Depois de longos minutos percorrendo corredores, carregando o equipamento de projeção, finalmente encontro a sala correta. Já nos corredores da enfermaria, somos avisados de que não será possível voltar à enfermaria onde estivemos semana passada porque infelizmente houve um falecimento e as demais pacientes encontram-se dormindo ou sedadas. Automaticamente a imagem da paciente que morrera vem em minha memória e seus olhos assustados me comovem. A sensação de impotência que me deu, ao contemplar seu rosto, retorna naquele momento e por alguns minutos sinto um enorme cansaço. Mas é preciso continuar e partimos para outra enfermaria. Ali estão quatro pacientes, sendo que duas dormem. Há também duas acompanhantes. Tentando driblar o pânico inicial de estar ali pela primeira vez como a responsável pela exibição do dia, começo conversando com elas, falando um pouco sobre o filme que verão. Para aquela exibição pensei em continuar o processo de dialogar música e história do cinema, trazendo o filme Cantando na chuva.Ao contrário do que se pensa, o filme não é apenas um musical, mas fala da própria indústria cinematográfica, relatando com bom humor um momento particularmente emblemático da história do cinema:a passagem do cinema mudo para o cinema sonoro, pelos idos de 1930. Filme a postos, se iniciou a exibição e nos primeiros minutos parece impossível que consigamos vivenciar a experiência fílmica em alguma medida. Pra começar, fazia um calor senegalesco na enfermaria que, para piorar tudo,era intensamente iluminada. Para piorar, alguns elementos na aprende dificultavam a leitura da legenda. Sobrava aos profissionais de saúde o encantamento com o filme, entrando na sala e fotografando e pedindo que voltássemos para fazer uma sessão em uma sala melhor. E quando o desânimo começava a me dominar, o filme mostrar uma cena de dança entre Gene Kelly e Debbie Reynolds. E então meu olhar percorre a enfermaria e vê que todas as pacientes acordadas acompanham, cada uma a seu modo, a narrativa que se desenrola na “tela”. Até as acompanhantes arrastam as cadeiras para poderem ver o filme e inclusive (suprema vitória!) deixam de lado o celular. Enquanto o filme se desenrola ouço um ruído num canto da enfermaria e vejo que a paciente que dormia, embora tivesse dificuldades motoras, ergue as mãos até acionar os botões do leito e vai devagarzinho posicionando-o para que possa ver melhor a tela. É impossível não me emocionar. Depois de quase uma hora de exibição é necessário interromper o filme (que tem 02h40min de duração). Converso com as pacientes e todas afirmam terem gostado muito da história e me agradecem bastante. Inclusive a que movera o leito, que me parecia não querer ou não poder se comunicar me olha e sorri agradecida. Saio da enfermaria com o coração leve, pensando nos motivos que possibilitam o interesse e a vinculação. Talvez tenha sido o inusitado de um filme em uma enfermaria adulta. Via de regra, são as enfermarias infantis que concatenam os olhares e têm seu espaço disputado por inúmeros projetos e pessoas que vem oferecer seu carinho e seu tempo. Aos adultos, geralmente, resta o silêncio e as horas infinitas, somente sendo rompidas pelo cotidiano de procedimentos e remédios. Vez em quando, um caso mais grave afeta toda a enfermaria. No restante do tempo, a espera longa, pela cura ou pela morte. Em cada esquina o cansaço parece ser a única certeza nos rostos mas, se chegarmos bem perto,veremos surgirem, ainda que enevoados por camadas de rotina, laços afetivos, que se formam em sorrisos de reconhecimento ante pacientes e profissionais de saúde, entre os funcionários do hospital e todos aqueles que de algum modo participam daquele ambiente. O cinema então se torna mais do que uma imagem, potencializa-se pela sua instância musical, que convoca os olhos e abre espaço para o afetivo e a memória. Não se trata somente de uma experiência que interrompe a passagem do tempo, mas a ressignifica, torna-a sensível, posto que saia da imagem projetada na parede e vai, um a um, chegando ate os rostos que contemplam o filme. Em cada expressão emocionada, uma teia da rede de afetos, que constroi um pertencimento simbólico, território sensível, feito de musica e sonhos, que afeta a todos que estão ali mesmo que por alguns minutos. Por alguns momentos, ante os corpos que dançam e as vozes que cantam, estamos irremediavelmente em comunhão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário