segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Sobre bolhas de sabão ou : quando correr não é uma opção (Territórios Sensíveis: 11/09/15-Enfermaria C)

A visita de sexta-feira começou em clima mais frio, não somente devido à meteorologia, mas porque, logo de cara, percebia-se certo desânimo no ar. Assim que chegamos, encontramos nosso pequeno cineasta, Pedro, amuado no corredor, pois ia ser submetido a um procedimento cirúrgico. Também Julia, a menina que conhecemos na semana passada, chorava baixinho encolhida no seu leito, no fundinho da enfermaria C.Parecia que nada poderia melhorar o dia deles,nem mesmo uma sessão de cinema.Diante de tal quadro, a possibilidade de passar um filme parecia quase criminosa ou no mínimo ineficaz,mas ainda assim foi necessário resistir.Ao todo, a enfermaria escolhida tinha seis crianças, duas meninas em seus oito anos, uma mais velha, Sara, diagnosticada segundo a própria mãe com hipersensibilidade e dois meninos,que dormiram durante toda a sessão. Foi a mãe de Sara que também contou que como a filha não podia frequentar escolas,usava DVDS de filmes para educá-la. Uma das meninas, Letícia, nossa conhecida, permaneceu em seu leito, como sempre que íamos até sua enfermaria. Ainda assim, quando iniciamos os preparativos para a sessão, postou-se de modo a acompanhar de sua cama o filme que seria exibido.Também Julia permaneceu em seu leito, sob pesadas cobertas,mas acompanhou com algum interesse o filme,chamado A menina e o cachorro flautista.Um acontecimento curioso:a história,que se passava em uma praia,incluía uma cena onde algumas pessoas realizavam um ritual para Iemanjá.Imediatamente a mãe,alarmada, postou-se na frente da filha,para que ela não visse a cena.Ainda assim, o fato da história reunir elementos de filmagem e animação parece captar a atenção das crianças, como uma janela que se abre para o mundo. Até mesmo Sara pareceu se acalmar um pouco durante a sessão. No meio do filme, uma interrupção: entram na enfermaria alguns profissionais de saúde para realizar um procedimento em Julia. Como é de costume,mais uma vez a ciência e suas urgências atravessam a narrativa fílmica no hospital.Ainda assim, quase todos os profissionais pedem desculpas pela interrupção,pois parecem perceber a importância da atividade para crianças tão pequenas,presas por dias,semanas e meses em um mesmo lugar. Há momentos, entretanto em que o lúdico é atravessado pelo cotidiano. Quanto a nós, é necessário fazer-se invisível, não interferir e mais do que isso, procurar não olhar, posto que a visão de corpos infantis machucados sempre é muito dura.Mas é preciso resistir ao impulso de pegar aquela menina no colo,de consolá-la,ou de sair correndo. Mesmo com os olhos baixos ouso imaginar a dor e o incômodo de ter seu corpo machucado sendo manipulado por estranhos. Em uma das poucas vezes em que levanto os olhos, a visão de um amontoado de bandagens e gaze ensanguentadas quase me fazem sair correndo.Melhor não olhar mais,decido. E o cinema, numa situação como essa?Fica ali, no cantinho reservado à imaginação, onde talvez Julia deva estar. É onde eu gostaria de estar também nesse momento, tão forte é a vontade de fazer parar a dor que ela com certeza sente. Como terá se machucado?E essas pessoas, esses profissionais tão jovens, na obrigação de intervir nesse corpo tão pequeno?Agora, em torno do leito de Julia se reúnem seis pessoas. Têm a certeza e a função de salvar o corpo da menina. E sua alma, quem salva?No ambiente do hospital a autonomia dos corpos parece não existir. Mas e a da alma? Seria possível voar ante tantas adversidades?Nesse viés, criar um caminho, uma proposta de narrativa e experiência sensível é timidamente abrir portas ou propor maneiras de a alma poder dar suporte ao corpo. Enquanto o procedimento prossegue, Sara grita interruptamente. No leito ao lado, uma aluna do projeto Alunos contadores de historias lê um livro para Letícia.No meio do barulho em que médicos debatem a ciência, o filme continua e a narrativa lúdica toma novamente o lugar dos processos científicos. No intervalo do filme são realizadas atividades com jogos de montar. Em alguns momentos, é preciso apropriar-se de atividades propostas pelos próprios pacientes, como contação de história ou brincadeiras com massinha de modelar. A mesma mão que chama, que se abre para acenar, também muitas vezes se fecha quando o cotidiano impossibilita a continuidade da brincadeira. E durante todo esse tempo, Pedro permanece no centro cirúrgico. Logo após o filme, Julia foi estimulada a criar um filme com cinco cenas, a partir de um bloco de montar. É interessante perceber que, por vezes, as crianças estão tão fragilizadas que aceitarem participar da atividade é quase um milagre. Mas, felizmente, Julia aceita a proposta da educadora do CINEAD e cria uma história de um cachorro chamado “o cachorro criativo”.É quando,em outro canto, a enfermaria se enche com bolhas de sabão, feitas pela irmã de Sara que viera visitá-la. Ante a visão das bolhas, Sara imediatamente passa a caçá-las, feliz. As bolhas podem ser uma excelente metáfora para os nexos possíveis entre nós e os pacientes do IPPMG: leves, frágeis e por vezes interrompidos abruptamente. Mas ,enquanto existem,são irremediavelmente belos.

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